Quadros clínicos após a vivência de um trauma

Por: Susana Oliveira (*)

O termo trauma provém do étimo grego que significa “ferida, choque contra o sistema”. A Associação Americana de Psiquiatria (APA, 2002) define atualmente o conceito de trauma como “ (…) a experiência pessoal direta com um acontecimento que envolva morte, ameaça de morte ou ferimento grave, ou outra ameaça à integridade física; ou observar um acontecimento que envolva morte, ferimento ou ameaça à integridade de outra pessoa; ou ter conhecimento de uma morte violenta ou inesperada, ferimento grave ou ameaça de morte ou ferimento vivido por um familiar ou amigo íntimo” (p. 463).

nem todas as queixas psicológicas associadas à vivência de um trauma remetem para a presença de um quadro de PTSD.

Os acontecimentos traumáticos compreendem eventos como combates em guerra, assaltos pessoais violentos (ataque sexual, ataque físico, roubo, estrangulamento), ser raptado, ser refém, ataque terrorista, tortura, ser prisioneiro de guerra ou de campos de concentração, desastres naturais ou provocados pelo homem, acidentes graves de automóvel e diagnóstico de doença ameaçadora de vida (DSM-IV-TR, 2002). Estes acontecimentos distinguem-se dos restantes pela sua gravidade, pela ameaça que representam para a vida e segurança de uma pessoa e pelas consequências psicológicas que podem provocar a longo prazo. Após estas experiências extremas a pessoa costuma sentir que não tem aptidões nem recursos pessoais e/ou sociais para fazer face às exigências estabelecidas pela situação, desenvolvendo a perceção de não ter controlo sobre os acontecimentos (Vaz Serra, 2003).

É comum, após a vivência de um acontecimento traumático, ocorrerem sintomas como medo e ansiedade, reexperiência do trauma, hiperestimulação e comportamentos de evitamento. Contudo, a maior parte das pessoas acaba por ultrapassar estas situações sem desenvolver perturbação psicopatológica posterior. Efetivamente, é a interação que se estabelece entre o meio ambiente e as características biológicas e mentais da pessoa que acaba por determinar o aparecimento de uma doença psiquiátrica após a vivência de um trauma.

Uma das reações típicas que a pessoa pode apresentar como reação à experiência traumática é a Perturbação Aguda de Stress (PAS), um quadro de gravidade significativa, que se inicia algumas horas após o acontecimento traumático mas que regra geral desaparece ao fim de poucos dias (tem a duração mínima de dois dias e máxima de quatro semanas).

Após um mês, se os sintomas persistirem, estamos perante uma Perturbação Pós-Stress Traumática (PTSD), que consiste numa reação mais grave e persistente. O diagnóstico envolve três grandes grupos de sintomas, que se caracterizam por sintomatologia de reexperiência do acontecimento traumático, embotamento afetivo/evitamento dos estímulos associados ao trauma e ativação neurovegetativa persistente. Nalguns indivíduos também podem ocorrer sentimentos de culpa (culpa do sobrevivente), ideias homicidas (muitas vezes associadas ao agressor), ideação paranoide (casos mais graves e crónicos), queixas somáticas, perda de crenças anteriormente mantidas e alteração nas características prévias da personalidade. A duração dos sintomas pode ser de menos de três meses (forma aguda), superior a três meses (forma crónica) ou o seu início pode suceder-se após seis meses da ocorrência do acontecimento traumático (inicio tardio ou retardado) (DSM-IV-TR, 2002). Alguns investigadores (Blanchard e Hickling, 1997) têm vindo a alertar para a importância da PTSD parcial, em que os indivíduos traumatizados não apresentam os sintomas necessários para o preenchimento completo dos critérios de diagnóstico de PTSD, mas encontram-se afetados de forma significativa no seu funcionamento quotidiano. Nas formas crónicas de PTSD, o evitamento e a sintomatologia de hiperactivação fisiológica podem tornar-se nos sintomas dominantes (Van der Kolk, 2000) e pode existir um período de alguns meses ou anos antes de aparecerem os sintomas, sendo que a sua reativação pode surgir devido a stressores de vida ou a novos eventos traumáticos.

Algumas das manifestações clínicas podem surgir não devido ao trauma em si mas às consequências que esse acontecimento provoca na vida da pessoa, muitas das vezes em termos de sequelas físicas (Fullerton e Ursano, 1997, citado por Vaz Serra, 2003). Assim, na prática clínica deparamo-nos com outros quadros clínicos que podem surgir após a vivência de um acontecimento traumático (Vaz Serra, 2003).

A Perturbação de Ajustamento observa-se usualmente em situações de emigração ou quando a pessoa adquire estatuto de refugiado, tornando-se um quadro grave quando ocorreu previamente a morte ou a separação de alguém com quem se estabelecia uma relação afetiva. Para além da perda, a pessoa vê-se confrontada com um ambiente totalmente diferente no que respeita a valores sociais, língua e hábitos culturais, que implica necessariamente uma mudança de vida.

Após um acontecimento indutor de grande stress ou a vivência de um trauma a pessoa pode igualmente desenvolver quadros depressivos, que podem ir desde uma reação depressiva breve (de grau leve e transitório) a um quadro depressivo prolongado e crónico (persiste durante anos), podendo ainda apresentar quadros mistos de ansiedade e depressão. No caso das crianças e adolescentes, é frequente observarem-se perturbações do comportamento, como comportamento regressivo, agressivo ou antissocial.

Portanto, nem todas as queixas psicológicas associadas à vivência de um trauma remetem para a presença de um quadro de PTSD. A avaliação da patologia traumática é particularmente difícil no que respeita às situações de PTSD crónica, em que o trauma ocorreu há vários anos ou décadas e em que pode existir a exposição a mais do que um acontecimento traumático, como é o caso da exposição a um teatro de guerra. Por outro lado, se não estiverem atualmente presentes todos os critérios de diagnóstico de PTSD podemos apenas afirmar a existência de um quadro parcial.

Não obstante, mais do que estabelecer um diagnóstico, o que nos parece realmente importante é tratar a pessoa, compreender a sua angústia relacionada com o trauma, ajudá-la a processar emocionalmente essas memórias, tratar os sintomas relatados e ajudá-la a encontrar um novo significado de vida, que lhe permita reajustar-se ao seu meio familiar, social e profissional.

BIBLIOGRAFIA: American Psychiatric Association (2002). DSM-IV-TR: Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (4.ª ed.). Lisboa: Climepsi; Blanchard, E.B., & Hickling, E.J. (1997). The psychological treatment of PTSD. After the crash: Assessment and treatment of motor vehicle accident survivor. Washington, D.C: American Psychological Association; Van der Kolk, 2000. Posttraumatic stress disorder and the nature of trauma. Dialogues in clinical neuroscience, 2 (1), 7-22; Vaz Serra, A. (2003). O Distúrbio de Stress Pós-Traumático. Coimbra: Vale & Vale Editores, Lda. 

 

*(Psicóloga Clínica na APOIAR)

 (Publicado originalmente no Jornal APOIAR Nº 88 jul/ago 2014)

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