O psicólogo clínico Nuno Duarte faz-nos uma descrição do modo como muitos ex-combatentes relatam as suas experiências de guerra nas sessões de terapia. Embora cruas, estas confissões são o que demais importante existe para se lidar com o trauma.
Este é um relato ficcionado. Toda e qualquer semelhança deste relato com a realidade é pura coincidência.
Por: Nuno Mendes Duarte(*)
"A picada doutor. Eu lembro-me da picada. Como é que posso falar do que não me quero lembrar. Posso acender este cigarro? Importa-se, doutor? Claro que não se importa… As pessoas não se importam de aturar quem sofre. Sim, porque eu sei que me está a aturar. No fundo, que é que quer de mim, ah claro, eu é que vim ter consigo. Engana-se. Eu não vim ter consigo. Eu estou aqui. Mas não vim ter consigo. Porque eu não consigo estar com ninguém agora… sou uma amálgama de destroços de mina embutidos em mim. Oiço berros de vidros estilhaçados e gemidos de ferro torcido que surgem do vento. A picada. A picada era uma poça de sangue. Cor de rubi, escarlate, sangue vivo que se esvai de um corpo que ainda corre para apanhar a vida, que já começou a fugir pela ladeira abaixo. Não sabe que isto é uma ladeira desde que nascemos. É sempre a descer e acaba a qualquer instante. Se fecho os olhos é isto que está cá. Uma valeta em tons de escarlate com cheiro a morte. Eu não me quero lembrar, mas tenho um filme a correr no limite do meu olhar. Um filme com ligação directa ao peito…
Imagine alguém sentado sobre o seu peito doutor, a fazer força. Agora experimente respirar quando o horror lhe sopra ao ouvido. O ar não entra, e há um choro sufocado que aperta ainda mais. Que vida é esta de sobressalto e tremuras? Eu não consigo pensar em guerra. São varas verdes, trémulas e gelatinosas que me enchem o lugar das pernas. E o horror do sangue na picada que não me larga a pele… não lhe cheira aqui a sangue, doutor?
A semana passada chorei todos os dias. Eu não chorava há dez anos. E pode não acreditar mas irrita-me tanto o silêncio como os barulhos que oiço. Deixo-me devorar por um choro de raiva e de medo? Porquê? Porque é que não o salvei?
E, o meu camarada que lá ficou? Eu podia ter detectado que ali estava a mina. Sabe que quando fecho os olhos à noite e tento dormir, ando às voltas amarfanhado por um lençol de culpa que me abafa, me agita e me faz saltar da cama às 3 da manhã… não aguento estas noites sem sono. Desde o Ultramar que não vivo. Só sonho. Som da mina a deflagrar, o rebentamento e o olhar dele no meu, enquanto grita pela mulher… Já sentiu alguém que vai morrer aos seus braços, doutor? Nestes pesadelos ainda tremo com os sobressaltos do corpo, um compasso de solavancos ritmados a sacudir o meu coração em chamas. O olhar daquele homem que sabe o que o espera, pedaços de aço em movimento que destroem as suas pernas… O corpo são pedaços de ferro ensanguentados. Estou a ouvi-lo com as pás do helicóptero a abafar gemidos surdos de dor... eu não estou doido, mas juro que ainda o oiço a gemer. Ele jaz na picada com cheiro a morte e escorre-lhe o sangue em tons de escarlate. Eu não me quero lembrar, mas preciso que isto me largue para voltar a ser livre. É por isso que estou aqui nesta sala, agora. Descobri que a culpa queima o estômago, ardendo em combustão lenta, desgasta e corrói o corpo até restar um esqueleto descascado do que se era. Eu era forte… sabe?
Agora pareço um caco arruinado que alguém deixou na soleira Invernos a mais… Gostava de ter os Verões de volta, que alguém me guardasse dentro de casa, me voltasse a pôr uma casca e me dissesse “Está tudo bem, aqui estás quente e seguro. A culpa não é tua.” Como é que o pensamento nos oculta a verdade? A verdade é que eu não podia adivinhar, é assim a guerra… no entanto, só me ocorre pensar: “Devias ter feito melhor, António.” Eu não me quero lembrar. Não vê esta bola de angústia que trepa pela minha garganta? São fragmentos de dor. São imagens, sons, emoções condensadas em cinco segundos de trauma. Cinco segundos que me estão a matar todos dias. Como é que me livro disto sem me lembrar…
Cada pensamento traz de volta tudo novamente como se estivesse ainda a com ele nos braços… Maldito! Quem…? Quem é que…? Quem é que nos salva quando deixamos de acreditar… Oh, doutor… No que desejaria eu voltar a acreditar? Simplesmente, que a vida ainda faz sentido. Terminei este cigarro, estou nas suas mãos. Mas ainda não estive aqui consigo. Continuo lá, traga-me de volta quando puder e, por favor, feche a porta porque vem aí o Inverno."
Publicado originalmente no nº 62 de Janeiro e Fevereiro de 2010 do Jornal APOIAR
(*) Psicólogo Clínico