As IPSS filhas e enteadas

Por: Humberto Silva (Editor Executivo do APOIAR)

IN: Editorial do Jornal APOIAR Nº 108

O agora denominado “Caso Raríssimas” ,que explodiu como uma bomba na comunicação social no fim do ano que agora acabou, veio pôr a nu muitas fragilidades do Terceiro Sector em Portugal. E levantar muitas questões pertinentes

Por um lado, temos o abuso de poder dos dirigentes, muitos deles autodidactas e sem formação específica para gerir um sector que é, na sua natureza, originado no amadorismo e no voluntarismo, mas que depois se depara com desafios de gestão de verdadeiras empresas. Por outro, a promiscuidade e oportunismo entre interesses privados, públicos e políticos, numa área que, idealmente, deveria estar imune a essas questões mas que, na prática, não é diferentes das outras.

Estas fragilidades, mais expostas pelo mediatismo do caso, vieram dar a ideia geral  ao comum cidadão, que as associações funcionam ao Deus-dará, os seus dirigentes fazem o que lhes apetece ao dinheiro, e não servem para mais nada a não ser encher-lhes os bolsos e servir de alavanca política aos putativos candidatos partidários a qualquer coisa.

O facto é que, na maioria das vezes, é precisamente o contrário. Estas Associações, como é o caso da APOIAR, têm protocolos de financiamento com o Estado e são rigorosamente controladas nas suas contas, tendo de obrigatoriamente de apresentar contas regulares das actividades à tutela, – que no caso da APOIAR consistem em dois Ministérios, os da Segurança Social e da Defesa Nacional – e são financiadas euro a euro pelas actividades que desenvolvem.

Nestas associações, a realidade amiúde, é a de que o dinheiro, que é quase contado ao cêntimo, cai às pinguinhas, e é pago com atraso ao sabor das autorizações da Direcção Geral de Tesouro e Finanças.  Os seus dirigentes são muitas vezes doentes, utentes, pessoas comuns que ninguém conhece e muito menos quer saber, trabalham em regime de voluntariado e não são remunerados.

O princípio de transparência que levou à credibilidade do trabalho da APOIAR e ao seu reconhecimento está a ser cumprido desde que os seus dirigentes assinaram os protocolos que permitem a esta Associação fazer um serviço pioneiro de tratamento do stress de guerra, que não pode ser replicado pelos hospitais do Estado, por melhores técnicos e instalações que tenham.  Tudo feito com este princípio simples.: Se a APOIAR não der consultas, a única coisa para a qual está protocolada, não recebe. E esse escrutínio é feito com o rigor possível que a instituição militar permite.

Há também algo que este caso demonstrou que é mais preocupante. Parece que há IPSS que são tratadas como filhas e outras como enteadas. Quando há IPSS que contam trocos para manter as portas abertas, outras podem gastar dinheiro em carros e vestidos de luxo.

Perante isto, as questões que deixamos são as seguintes: quem paga isto e porque é que isto acontece?

As possíveis respostas apresentam problemas. Primeira possibilidade: se estas alegados gastos são feitos ao abrigo dos protocolos com o Estado é grave. Significa que o mesmo escrutínio que aperta as magras contas de algumas IPSS não é o mesmo que alimenta os luxos de outras. E essa possibilidade fere de morte o Estado de Direito em que vivemos.

Mas não sendo assim, admitamos que o dinheiro do Estado está na sua parte a ser bem utilizado. Significa que esse dinheiro tem de vir de outro lado. É onde entra o financiamento privado das IPSS.

Este financiamento, feito por empresas, está muitas vezes preso à “identificação dos valores da empresa ao projecto de solidariedade”, como já por várias vezes foi dito em conferências sobre o terceiro sector onde a APOIAR esteve presente. O que no fundo se traduz como o “projecto que der mais visibilidade à marca”, o que nem sempre significa que seja um projecto mais válido do que aqueles que são menos visíveis e por consequência menos financiados.

É certo que um projecto como as Raríssimas que apoia crianças com doenças raras e mentais tem valor e pode dar importante retorno de credibilidade à marca que o apoia. Mas, e os outros? O apoio ao Stress de Guerra não é também um projecto válido?  Só porque  não fica tão bem em televisão o “boneco” de um homem de sessenta e sete anos quebrado pela guerra como o de uma senhora vestida com roupa de luxo ao pé de uma rainha? Isso faz a diferença  no financiamento privado de causas públicas e é a aberração ética com que temos de viver.

O Estado deve ser então o grande equalizador nestes casos. Fazer com que, independentemente do projecto ser mais ou menos visível para as marcas que eventualmente os possam financiar, esses mesmos projectos possam continuar a apoiar os seus utentes sem interrupções ou atrasos no financiamento .

Uma nota final de comparação: A Assembleia Geral da Raríssimas que elegeu  os corpos sociais que irão substituir  Paula Brito da Costa e todos os que se demitiram teve a presença de 20 pessoas, menos de 5% do universo dos associados, e um universo de 200 utentes. A APOIAR teve as mesmas 20 pessoas em média nas suas últimas assembleias gerais, aproximadamente os mesmos 5% dos seus associados, e um universo de 280 utentes protocolados.

A APOIAR tem um orçamento anual de 140.000 euros. A Raríssimas de mais de 4 milhões de euros.

Como dizia o outro, é fazer as contas.

 

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