Adoptado e traduzido por: Humberto Silva
O LADO OBSCURO DA GUERRA MODERNA – um piloto da Força Aérea Britânica avisa: não é pelo facto de se estar atrás de um ecrã de televisão a milhares de quilómetros do alvo que não se desenvolvem traumas ao pilotar drones de combate. Esta é uma realidade que nem toda a tecnologia moderna pode evitar.
Nos últimos anos a palavra drone ocupou lentamente o imaginário de uma sociedade contemporânea cada vez mais obcecada com as novidades tecnológicas. A palavra inglesa, que significa literalmente “zangão” foi adoptada para identificar aeronaves não tripuladas. Embora hoje em dia toda a gente possa comprar um pequeno drone telecomandado para fazer as suas filmagens aéreas, os drones começaram a ser conhecidos pelo seu uso militar, principalmente por causa dos ataques teleguiados ao terrorismo islâmico feito pelas forças aéreas norte americanas e britânicas no Iraque e Afeganistão e mais recentemente na Síria. Esta forma “limpa” de fazer guerra não se limita a fazer vítimas do lado dos alvos. Várias publicações inglesas e norte-americanas noticiam que os pilotos dos drones militares também desenvolvem sintomas de stress pós traumático.
Por certo imaginam que ser piloto de drone não será diferente da de um jogador de jogos de vídeo. Em frente a um ecrã com uma manete na mão, a comandar um robô telecomandado que, a milhares de quilómetros de distância, dispara contra uns pontos pixelizados no ecrã. Depois desliga a consola e vai para casa. Esta é a noção de guerra limpa que muitos terão. No entanto a realidade é que, para quem está atrás desses ecrãs, a guerra não termina quando regressam ao lar.
Apesar de não estarem na frente de combate como os soldados nas guerras convencionais, estes pilotos causam baixas reais, matam pessoas, destroem edifícios e veículos e, não raras as vezes, causam danos colaterais. E esses factos não desaparecem da consciência de quem os realizou.
Em declarações ao jornal inglês The Telegraph, o perito em aviação Peter Gray, lembra que apesar de não terem a imagem do “guerreiro cansado” dos soldados das frentes de combate, os pilotos de drones podem ter níveis de stress pós traumático muitas vezes maiores que dos pilotos de bombardeiros convencionais.
A estreia recente do filme “The Good Kill” (A Boa Morte ou A Morte Limpa, numa tradução livre para português) com o actor Ethan Hawke voltou a trazer o assunto à baila. Há uma cena específica em que o personagem principal, um piloto de drones localizado numa base naval em Las Vegas, assiste regularmente no ecrã à vida quotidiana das pessoas que está prestes a matar num ataque. Esta visão desumanizada da guerra e o peso emocional da função levam a que o piloto acabe por ter um esgotamento mental.
Esta situação ficcionada não anda longe da realidade. Em 2013, um extenso relato do piloto de drones Brandon Bryant publicado na revista GQ, dá conta de como, precisamente, o estar atrás de um ecrã a decidir a vida ou a morte de pessoas pode ter um peso incomensurável na vida de um piloto de aeronaves não tripuladas.
Bryant foi um dos primeiros pilotos de drones em 2005. Recrutado para ser analista de imagens, foi convencido a juntar-se a uma equipa que iria ser como “aqueles que dão a informação toda para que o James Bond possa trabalhar”. Acreditava que esta forma limpa de guerra poderia causar menos baixas e salvar mais vidas.
Depois de dez semanas de treino estava a pilotar um drone no Afeganistão a partir de uma caixa escura numa base aérea secreta no Texas. A sua primeira missão marcou-o para o resto da vida. O seu drone detectou uma mina artesanal colocada na estrada por insurgentes mas as contramedidas electrónicas, usadas pelo comboio de jipes militares, impediram que a coluna fosse avisada a tempo. À distância, e sem poder fazer nada, viu um dos veículos Humvee explodir e com ele dois soldados morrerem e três ficarem gravemente feridos. Nessa noite simplesmente foi para casa.
As missões, numa altura em que a guerra estava a correr mal, prolongavam-se por horas e horas. A Força Aérea dependia muito dos drones para acções de vigilância. Bryant recorda turnos de 12 horas, 6 dias por semana, em que acompanhava o dia a dia e o quotidiano perfeitamente normal dos seus alvos. Vigiava-os a tomar chá com os amigos, jogar à bola com os filhos, fazer amor com as mulheres no topo dos telhados, tudo através dos ecrãs da câmara de infra vermelhos, sem que o alvo alguma vez percebesse que era vigiado constantemente.
Durante os primeiros meses pouco disparou mas teve de assistir a muitas coisas terríveis. Como por exemplo, um líder de uma comunidade ser executado por dois talibãs mesmo à frente do seu ecrã.
O automatismo e frieza da sua vigilância robótica atingiu o auge quando, ao voar uma missão de rotina recebeu a ordem de destruir um edifício porque nele estaria um alvo importante. O edifício estava calmo e parecia estar vazio. Foi apenas informado que o alvo estaria a dormir. Foi dada a ordem de disparo e o míssil “Hellfire” seguiu o seu caminho. Foi quando nos ecrãs lhe surgiu pixelizada uma imagem de o que lhe pareceu ser uma criança, ou um ser humano pequenino, a correr na direção do edifício que tinha sobre mira. Já era tarde. A imagem seguinte foi a do impacto do míssil no edifício. Bryant ainda perguntou ao seu copiloto de drone se também lhe pareceu ser uma criança. Do outro lado do intercomunicador responderam, não sabe de onde, que seria um cão. No relatório da missão nunca houve referencia a um cão, nem à criança. O que quer que Bryant tenha visto nunca foi referenciado, eventualmente diluído nos relatórios pelo superiores. Apenas um fantasma infravermelho.
Quando terminou a sua comissão de seis anos foi-lhe entregue um relatório estatístico das suas missões. O número contabilizado foi um murro no estômago para Bryant:
6000 horas de voo;
centenas de missões;
1626 inimigos mortos em combate.
Brandon recorda que, logo que o primeiro míssil atingiu o seu alvo ele não quis falar com ninguém sobre isso. Até que um dia parou o carro a chorar e telefonou à mãe. “Matei uma pessoa” disse-lhe, “e não me sinto bem com isso”. A mãe respondeu-lhe que isso era bom. Nunca ninguém deveria sentir-se bem com tais coisas.
Há relatos de outras formas como os seus colegas pilotos de drones lidaram com a situação. Houve quem após cada missão fosse para casa afogar-se em whisky. Uma mulher piloto após a sua primeira vítima mortal pura e simplesmente recusou-se a participar em mais missões, mesmo arriscando uma ida ao tribunal marcial. Pesadelos recorrentes com ecrãs pixelizados eram o prato do dia para Bryant.
Foi quando um dia explodiu. Na fila para pagar numa loja encontrou um adolescente cujo irmão também tinha estado no Afeganistão. O rapaz gabava-se das mortes do irmão. Bryant não aguentou e respondeu-lhe de volta: “Se voltas a desrespeitar as mortes das pessoas assim esfaqueio-te, ouviste?”
Foi um veterano do Vietname que o aconselhou ser acompanhado num VA Center (Centro para veteranos) e aí foi-lhe diagnosticado “Perturbação de Stress Pós Traumático”.
O diagnóstico foi inesperado tendo em vista o quadro típico da vítima de stress de guerra. No entanto, os especialistas acreditam numa mudança tectónica, uma mudança de placas. Onde antes o stress traumático era causado por coisas que aconteciam na guerra aos soldados agora surge de coisas que o soldado provocou ou não conseguiu evitar aos outros, tal como define o psiquiatra clínico Jonathan Shay. O instrumento é que muda, da baioneta para o míssil Hellfire disparado de um drone a milhares de quilómetros de distância. Bryant cabe perfeitamente neste paradigma.
Em 2011, os psicólogos da Força Aérea concluíram um inquérito de saúde mental feito a 600 operadores de drones de combate. 42% das tripulações de drones relataram stress moderado a elevado e 20% relataram exaustão emocional ou burnout.
Um estudo posterior descobriu que os operadores de drones sofrem os mesmos níveis de depressão, ansiedade, PPST, abuso de álcool e tendências suicida que as tripulações de combate tradicionais.
Bryant voltou à Força Aérea como reservista para um programa de treino para pilotos que caíam atrás das linhas inimigas numa tentativa de salvar vidas em vez de as matar mas um acidente fê-lo desistir e voltar a uma espiral de depressão e alcoolismo. A sua história sobre a criança passou para os media ingleses com um título enganador e foi considerado traidor pelos seus pares. O seu stress pós-traumático foi desacreditado pelas comunidades virtuais. Muitos achavam impossível que um operador de drones de combate pudesse sofrer de stress pós traumático. Bryant travava uma batalha virtual sobre batalhas reais.
“Combate é combate. Matar é matar. Isto não é um jogo de vídeo. Quantos de vocês já mataram um grupo de pessoas, assistiram os seus corpos serem apanhados, assistiram ao seu funeral e, em seguida, matou-os também?” replicou Bryant em longas trocas de argumentos em redes sociais.
Ele diz que quando fazia as missões, às vezes sentia-se fundir com a tecnologia, imaginando-se como um robô, um zombie, ele próprio um drone. Hoje já não sonha com o mundo pixelizado. Voltou a estudar para ser paramédico. Pode ser que um dia conduza uma ambulância. Talvez finalmente possa salvar vidas como um dia sonhou.
Este texto foi adaptado e traduzido do inglês a partir de reportagens publicadas, disponíveis a partir das seguintes ligações