O Stress de Guerra é hereditário?

Por: Susana Oliveira (Psicóloga Clínica)

A questão da Perturbação Secundária de Stress Traumático é recorrente no que toca às vítimas de stress de guerra e aos seus familiares. Muitas vezes a origem desta perturbação, que afecta quem vive com a vítima de Stress de Guerra, é confundida com algo que se transmite por hereditariedade. Para esclarecer as dúvidas e equívocos que muitas vezes surgem aos nossos associados(*) e mesmo à comunicação social, como foi o caso do artigo do Público do passado dia 8 de Novembro (**), publicamos aqui um texto da Psicóloga Clínica da APOIAR, Susana Oliveira, que está a desenvolver uma investigação precisamente acerca desta problemática com utentes da APOIAR.

Estudos na área do stress traumático têm demonstrado que as pessoas que estão em contacto frequente e íntimo com vítimas de trauma podem experienciar sintomas semelhantes (e.g. Matsakis, 1996; Figley, 1998).

Diversas investigações (e.g. Arzi, Solomon & Dekel, 2000; Rosenheck & Nathan, 1985) têm demonstrado que as esposas e filhos, por exemplo dos veteranos de guerra, apresentam sintomas similares à Perturbação de Stress Pós-Traumático (PTSD), vulgarmente conhecida por Stress de Guerra.

Algumas pessoas têm-me perguntado se o Stress de Guerra é hereditário, se é transmitido de pais para filhos.

Figley (1998), um autor que se tem dedicado ao estudo do impacto do trauma sobre as famílias do indivíduo traumatizado, propõe uma teoria explicativa do stress traumático secundário nos familiares dos ex-combatentes. O autor defende que os sintomas de stress traumático são comunicados ou existe um mecanismo de contágio do ex-combatente traumatizado para os elementos com quem estabelece relações significativas, daí que estes desenvolvem sintomas semelhantes.

Neste sentido, o Stress Traumático Secundário relaciona-se com a experiência de tensão e distress associada às exigências de viver e cuidar de alguém que apresenta sintomas de PTSD. Mesmo que a experiência de guerra não seja verbalizada, as esposas e os filhos estão expostos às reacções emocionais e físicas do ex-combatente, podendo ter sentimentos de empatia com as suas experiências traumáticas. Assim, podem desenvolver Perturbação Secundária de Stress Traumático (STSD), sendo secundária porque não vivenciaram directamente o contexto de guerra (e por isso não se pode afirmar que também sofrem de Stress de Guerra) mas porque estão expostas aos sintomas do doente traumatizado que viveu directamente a guerra. Concretizando, a STSD não é transmitida de forma hereditária, resultando antes do convívio e contacto intimo com um doente que sofre de PTSD.

Num estudo que teve início na APOIAR em 2003, tenho procurado avaliar de que modo o Stress de Guerra, a Depressão e a Ansiedade dos Ex-Combatentes da Guerra Colonial Portuguesa tem impacto nas suas esposas e filhos. Até à presente data já foram avaliadas 66 famílias, constituídas pelo ex-combatente, esposa e filho mais velho do casal (sempre que possível).

Os primeiros dados desta investigação, que continua em curso, revelam que existe STSD nas esposas dos ex-combatentes com PTSD, que a depressão e ansiedade dos ex-combatentes têm uma influência na sintomatologia dos seus filhos e que a depressão das mães tem um impacto directo sobre os filhos, sendo que estes resultados estão de acordo com os encontrados noutros estudos (e.g. Matsakis, 1996).

Constatou-se que em média estes casais estão casados há cerca de 35 anos, o que reforça o longo período de tempo de convívio com o trauma do marido, a dedicação e o desgaste emocional destas mulheres. A relação entre o ex-combatente e o seu filho habitualmente também é complicada, podendo caracterizar-se por um distanciamento emocional ou por um comportamento de superprotecção e supervalorização. Ora, se o estado emocional do ex-combatente é tendencialmente marcado pela ansiedade e depressão, é natural que esse seja o clima emocional estabelecido entre pai e filho. Por outro lado, a tentativa destas mães de compensarem muitas vezes os filhos da ausência dos pais, fá-las desenvolver relações de grande proximidade com eles.

Numa família as pessoas estão em contacto frequente e estabelecem uma relação íntima, portanto influenciam-se umas às outras.

(*)Ver APOIAR nº 60, p. 12 “A Guerra Tabu”

(**) O artigo pode ser consultado online no site da apoiar, na secção “Arquivo de Imprensa

Publicado Originalmente no nº 61 de Novembro e Dezembro de 2009 do Jornal APOIAR

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