Por: Humberto Silva
Índice
Introdução
O modo como o jornalismo cobria a Guerra Colonial Portuguesa (1961-1974) e o que era permitido transmitir nos meios de comunicação durante esse período são temas ainda pouco explorados pelos historiadores e investigadores. Foi para abordar estas questões importantes que a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH) organizou um colóquio especializado sobre o tema.
Para quem não viveu diretamente o conflito, é difícil imaginar que uma guerra que mobilizou mais de 400.000 homens portugueses durante 13 anos fosse praticamente invisível para a maioria da população. Enquanto ex-combatentes guardam memórias vívidas do conflito, quem permaneceu na metrópole mal recebia informações sobre o que realmente acontecia nas então colónias ultramarinas.
“Para a população civil de Luanda ou Lourenço Marques, a guerra era apenas um conceito tornado realidade intermitentemente pelas colunas militares que passavam ocasionalmente pelas ruas das cidades.”
Este colóquio, organizado pelo Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ) e pelo Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens (CECL) da FCSH, reuniu importantes figuras do jornalismo da época, investigadores, ex-diretores de jornais e ex-combatentes para debater este tema fundamental para compreender a história contemporânea portuguesa.
A Censura e a Propaganda: A Primeira Vítima da Guerra é a Verdade
A investigadora Ana Cabrera, do CIMJ, contextualizou o panorama jornalístico da época, destacando que a maioria dos jornais era controlada por empresas familiares financiadas por grandes grupos empresariais. Marcello Caetano, que sucedeu Salazar, compreendeu melhor o potencial dos jornais como instrumento de propaganda, utilizando-os para transmitir “Acção e emoção”.
Simultaneamente, as redações dos jornais começaram a receber uma geração mais jovem, formada durante as crises académicas, o que trouxe novas perspetivas ao jornalismo português.
O Jornalismo Colonial: Uma Realidade Distinta
Nas colónias, o panorama jornalístico era bastante diferente. Os jornais serviam essencialmente a população colonial letrada, deixando de fora a maioria dos habitantes locais que:
- Não tinham recursos financeiros para comprar jornais
- Eram analfabetos
- Não dominavam a língua portuguesa
O investigador Silva Torres destacou que a rádio tornou-se o meio de comunicação mais influente nas colónias, sendo também menos controlado devido às emissões piratas dos movimentos de libertação. Estas emissões em onda curta eram difíceis de controlar, e o governo tentava limitar o acesso a recetores de onda curta aplicando taxas dez vezes superiores às dos recetores de onda média.
“A primeira vítima da guerra é a verdade.” – Joaquim Letria, jornalista
O jornalista Joaquim Letria recordou que havia um desinteresse generalizado pela guerra na metrópole, onde o conflito era reduzido à “festa” das partidas e chegadas dos navios que transportavam as tropas. A maioria dos repórteres que acompanhavam as operações militares nem sequer eram jornalistas profissionais.
O Papel da Imprensa Internacional
O início do conflito em Angola, em 4 de fevereiro de 1961, atraiu grande atenção internacional, especialmente após o caso do assalto ao navio Santa Maria. A pressão da imprensa estrangeira forçou o regime a permitir alguma cobertura dos acontecimentos, embora evitando termos como “independentistas”, preferindo palavras como “desordeiros” para caracterizar os insurgentes.
Mecanismos da Censura
Azeredo de Carvalho analisou os mecanismos de censura durante os governos de Salazar e Marcello Caetano, observando que este último geria os meios de comunicação com maior eficácia. A censura em Portugal variava entre reativa e impositiva, dependendo do período, mas muitas vezes era autoimposta pelos próprios jornalistas para evitar suspensões.
O investigador José Filipe Pinto explicou que, com o início da guerra nas colónias, foi necessário criar comissões específicas de censura, que controlavam sobretudo informações:
- De natureza económica
- De cariz social
- Sobre abusos de poder das autoridades
- Relativas ao armamento dos “terroristas” (frequentemente superior ao português)
Curiosamente, verificava-se por vezes o “excesso de censura”, fenómeno que ocorria porque os censores eram pagos à peça – quanto mais censuravam, mais recebiam.
A Guiné de Spínola: Um Caso à Parte
A Guiné sob a governação de António de Spínola constituiu uma exceção notável no panorama informativo colonial. O general gozava de um estatuto especial que lhe permitia uma abordagem diferenciada à guerra, como recordou o jornalista Cesário Borga, que realizou comissões naquele território.
João Palmeiro, ex-militar na Guiné e atual Presidente da Associação Portuguesa de Imprensa, sublinhou que, embora a censura militar seja normal e necessária em situações de guerra, sentia-se relativamente livre para mostrar a realidade aos jornalistas estrangeiros que visitavam o território. Esta atitude mais liberal resultou no seu afastamento pela PIDE.
As Duas Verdades da Guiné
Otelo Saraiva de Carvalho, que atuou como secretário de imprensa do general Spínola, explicou como programava as visitas dos jornalistas estrangeiros para destacar o desenvolvimento da Guiné sob a liderança de Spínola. Existiam, portanto, duas narrativas distintas:
- A narrativa oficial sobre a guerra em África
- A narrativa específica sobre a “guerra interna” e a política de Spínola
O jornalista Avelino Rodrigues, que trabalhou na Guiné, recordou como os jornalistas frequentemente se deixavam fascinar pelo “espetáculo da guerra”, mostrando apenas o lado das tropas portuguesas. Em Bissau, “respirava-se a guerra mas não se a sentia”, criando uma realidade paralela.
Avelino, conhecido por suas posições de esquerda, foi especificamente convidado por Spínola para validar a sua visão alternativa do conflito. As suas crónicas tornaram-se dos primeiros trabalhos verdadeiramente jornalísticos sobre a guerra publicados em Portugal, embora uma entrevista ao General Spínola tenha sido objeto de censura direta por parte de Marcello Caetano.
Jornalismo em Moçambique e Angola: A Guerra que Não Existia
A escritora Manuela Gonzaga recordou como a guerra parecia não existir tanto na metrópole como nas próprias províncias ultramarinas. Em Lourenço Marques (atual Maputo), os movimentos de tropas eram constantes e crescentes, mas pouco se sabia das razões dessas movimentações.
A Guerra como Propaganda
Os desfiles militares serviam para glorificar o regime e exaltar Portugal, transmitindo a impressão de que as tropas não iam realmente para a guerra. A narrativa dominante era que todos os guerrilheiros eram vencidos ou se rendiam. As notícias sobre mortos eram publicadas discretamente, sempre em páginas pares e em cantos inferiores dos jornais.
Manuela Gonzaga lembrou como via os soldados regressarem das operações no mato:
- Solitários
- Cansados
- Abandonados
- Em silêncio absoluto
Os relatos das operações militares eram sempre tardios e redigidos de forma otimista, transmitindo certeza na vitória portuguesa.
A Censura em Angola
Rodrigues Vaz, ex-diretor do Jornal de Angola, explicou o processo de censura sob o lema “A Pátria não se discute”. A autocensura era a norma entre os jornalistas, que eram advertidos com um “Não se meta nisso que só lhe dá chatices” quando tentavam aprofundar qualquer questão sensível.
O jornalismo em Angola limitava-se essencialmente a reproduzir notas de imprensa oficiais, com fotografias pré-selecionadas pelo centro de informação do regime. Por isso, nas grandes cidades, a guerra era percebida como algo distante e já praticamente ganha, semelhante ao sketch cómico “A Guerra” de Raul Solnado.
Moçambique: A Guerra Invisível
O General Fontes Ramos, que comandou uma companhia em Moçambique, explicou como as forças armadas portuguesas adotavam uma abordagem mais pedagógica junto das populações locais. Como a guerra em Moçambique inicialmente se limitou ao norte, enquanto o sul era controlado através de ações pedagógicas dos militares, a população urbana vivia distante da realidade bélica.
A cobertura jornalística era quase inexistente. Como exemplo revelador, num jornal publicado em 1970, apenas 16 dos 184 números continham notícias sobre a guerra, limitando-se geralmente a mencionar a chegada e partida de contingentes. Só a partir da “Operação Nó Górdio” começaram a surgir notícias mais frequentes, focadas exclusivamente nas derrotas dos “terroristas”.
Salazar, o Império e o Telejornal: A Televisão como Arma
O professor Rui Cádima encerrou o colóquio apresentando o seu trabalho sobre o Telejornal e a Guerra Colonial, analisando a transição de uma ausência inicial da ideia de Império na televisão portuguesa para o seu uso propagandístico, primeiro com Salazar e depois intensificado com Marcello Caetano.
A Televisão como “Soldado”
Embora Salazar fosse tradicionalmente avesso aos meios de comunicação social, os acontecimentos de 4 de Fevereiro de 1961 em Angola, combinados com pressões internacionais, forçaram o regime a controlar ativamente a informação sobre a questão colonial. O Telejornal da RTP tornou-se o instrumento privilegiado para esta propaganda.
Anteriormente, havia um quase total desconhecimento sobre as colónias na metrópole. Foi a pressão da ONU em 1959 que levou Salazar a começar a dirigir-se à população sobre a “unidade e coesão de Portugal e das suas colónias”. Começaram então a ser transmitidas:
- Notícias sobre visitas dos governadores às províncias
- Peças sobre acontecimentos quotidianos nas colónias
- Imagens que transmitiam uma ideia de normalidade portuguesa em todos os territórios
A Mudança de 1961
O ano de 1961 marcou uma viragem decisiva. O ataque ao paquete Santa Maria e à prisão em Luanda obrigou o Telejornal a adaptar a sua narrativa para lidar com a realidade de que a paz não era tão “admirável” como se pretendia fazer crer.
O Telejornal transformou os movimentos independentistas em “actos de pirataria” perpetrados por “bandoleiros” e apelava à população para participar em campanhas de solidariedade com as “vítimas do terrorismo”. Esta abordagem propagandística visava:
- Afirmar a “inquestionabilidade do domínio colonial português em África”
- Legitimar perante a opinião pública a campanha militar
- Caracterizar o conflito como defesa contra uma “ofensiva exterior ao império”
A televisão era reconhecida como a retaguarda das operações militares – um “Soldado chamado Televisão”.
A “Arqueologização” do Problema Ultramarino
Inicialmente, o regime transmitia a convicção de que a paz chegaria rapidamente. No final de 1961, com alguns avanços no Norte de Angola, informava-se otimisticamente que as ações militares dariam lugar a simples “ações de policiamento”.
Durante os 13 anos seguintes, o regime continuou a utilizar o Telejornal como meio de propaganda para justificar a continuação da guerra. A partir de 1964, o tratamento do conflito na RTP passou a ser de mera “evocação”, assinalando os acontecimentos como efemérides. Segundo o Professor Rui Cádima, o problema ultramarino foi “arqueologizado em matéria de imagens e reportagens de guerra”.
Os Soldados Esquecidos: O Regresso às Sombras
Um dos aspetos mais significativos da cobertura mediática da Guerra Colonial foi o contraste entre a partida e o regresso dos soldados. Se as partidas recebiam alguma atenção, o regresso era frequentemente discreto e manipulado.
Muitos soldados regressavam durante a noite, sem aviso prévio às famílias, e eram reinseridos na vida quotidiana como se nunca tivessem partido. As notícias do regresso das tropas eram apresentadas como eventos rotineiros e festivos, escondendo a realidade traumática vivida por muitos.
“Os soldados, muitos deles da província, regressavam sem uma palavra e como se nada tivesse acontecido. De regresso junto aos seus, inteiros ou estropiados, todos foram varridos para debaixo do tapete da normalidade.”
O Silêncio de Gerações
A geração que construiu a democracia portuguesa foi uma geração marcada pela guerra, mas Portugal transitou para a liberdade sem ter tido noção real dos 13 anos de Guerra Colonial. Foi necessário esperar décadas para que a sociedade portuguesa começasse a compreender o drama vivido em centenas de milhares de lares.
Foram precisos 22 anos para reconhecer oficialmente que os homens que regressaram do Ultramar não eram os mesmos, e para iniciar uma cobertura jornalística sobre essa realidade. Ainda assim, muitos ex-combatentes continuam a viver com os seus traumas em silêncio, sem que aqueles que os rodeiam tenham conhecimento das suas experiências.
Conclusão
O colóquio organizado pela FCSH revelou como o jornalismo português durante a Guerra Colonial foi profundamente moldado pela censura e pela propaganda do Estado Novo. A ausência de uma cobertura livre e independente do conflito contribuiu para o prolongamento da guerra e para o desconhecimento generalizado sobre a realidade vivida nas colónias.
O Professor Rui Cádima encerrou o evento agradecendo à Comissão Organizadora, em particular a Sílvia Torres, aluna de doutoramento da FCSH que reuniu os participantes. Foi proposta a continuação anual deste tipo de encontros, como um núcleo permanente de investigação sobre o tema, iniciativa que foi bem acolhida, com a Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA) a oferecer-se para colaborar.
Apesar dos avanços na investigação sobre este período, ainda falta fazer muito jornalismo sobre a Guerra Colonial. A história dos soldados que regressaram “de noite sem ninguém à espera deles” e viveram “nas sombras e no medo” continua, em grande parte, por contar.
Este artigo foi baseado no colóquio “O Jornalismo Português na Guerra Colonial” realizado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa no dia 28 de Maio de 2015