Eu também estive na guerra… e ainda estou

Por: Maria Amélia Machado*

Sou esposa de um ex-combatente com stress de guerra. Casei-me em 1973, conhecendo o meu marido apenas depois dele vir do Ultramar.

“…já sou viúva e a guerra não morreu com o meu marido. A guerra ficou comigo e com o meu filho.”

Debati-me com essa realidade logo de imediato. No início não pensei que fosse stress de guerra, nem sequer sabia o que isso era. Pensava que aquela maneira de ser mais agressiva fazia parte da sua personalidade. No entanto, no meio de toda aquela violência física e psicológica, deixava sempre escapar um “Havias de passar o que eu passei na guerra”.

Na altura não fazia a mínima ideia do que aquilo queria dizer. Entretanto fui mãe e com esse acontecimento sempre pensei que ele poderia mudar. O que nunca chegou a acontecer.

Continuou a ser a mesma pessoa, violenta e agressiva mas desta vez também para o filho e para o resto da família. Ao longo de vinte anos dificilmente aquela pessoa deixou escapar um carinho ou uma preocupação comigo e com o filho. O mesmo nas coisas mais corriqueiras do dia-a-dia como o trabalho e a casa.

Até que a minha médica de família me encaminhou para o Hospital Júlio de Matos.

Foi apenas lá, no início da Associação APOIAR, debaixo daquele vão de escada que, 20 anos depois do início desta história, finalmente soube o que era o stress de guerra e finalmente tivemos apoio.

Neste momento já sou viúva e a guerra não morreu com o meu marido. A guerra ficou comigo e com o meu filho. Mas como o meu marido morreu deixei de poder ter apoio gratuito pela legislação actualmente em vigor. Mas eu estou cá ainda, tal qual há 20 anos.

No colóquio realizado na APOIAR tivemos a oportunidade de perceber esta realidade através de três perspectivas diferentes. A clínica, a ficcional e a dos testemunhos de pessoas reais, de filhos e esposas, como eu.

É preciso perceber que, assim como o jornalista João Paulo Guerra relatou no seu romance, a guerra não morre nos ex-combatentes. Ficam sequelas nas famílias e as famílias continuam a precisar de ajuda. Isso não é ficção, é a realidade.

Estive a representar a APOIAR nas comemorações do 10 de junho. Achei que era o meu dever, como dirigente da Associação, mas essencialmente como representante do meu marido. Ele já cá não está mas as suas dores ficaram comigo.

Penso que enquanto mulher de ex-combatente seria a mais honesta homenagem a isso, sem precisar de marchar nem de vestir uma farda.

Eu também estive na guerra. E ainda estou.

 (Editorial do Jornal APOIAR nº 99)

*Secretária da Direcção da APOIAR

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