O Jornalismo Português na Guerra Colonial

Por: Humberto Silva

O modo como o jornalismo cobria a guerra colonial e o que era deixado transparecer na comunicação social durante esse período são temas ainda muito pouco abordados pelos historiadores e investigadores. Foi numa tentativa de trazer um pouco de luz sobre estas temáticas que a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH) organizou um colóquio sobre o tema.

Se foi ex-combatente lembra-se com certeza muito bem da guerra. Mas o facto é que, quem não foi mobilizado para as colónias ultramarinas não tem propriamente memória dos eventos da guerra. Se falar a alguém que vivia na metrópole durante os 15 anos da Guerra Colonial e lhe perguntar se se lembra das operações militares em qualquer uma das colónias provavelmente a resposta que ouvirá será um não. Isto porque, pura e simplesmente para quem vivia em Portugal a guerra era apenas uma palavra, não uma realidade e se formos para as capitais das colónias essa realidade não era muito diferente.

Para a população civil de Luanda ou Lourenço Marques a guerra era apenas um conceito que era tornado realidade intermitentemente apenas pelas colunas militares que passavam de quando em vez pelas ruas das cidades.

Pura e simplesmente não se sabia da guerra. Era como se Portugal não tivesse mobilizado mais de 400.000 homens para as frentes de combate durante aqueles anos. Porque, para quem não era militar, só se poderia saber acerca do que se passava fora do país, ou fora dos perímetros das cidades, através da comunicação social, e a guerra nos jornais pouco existia. A televisão era praticamente ausente e controlada e as rádios oficiais pouco mais eram do que propaganda. Sobravam as rádios “livres” que apenas alguns poderiam ouvir através de aparelhos de rádio que escapavam ao controlo e à fiscalização. Era nestas condições que se fazia o “jornalismo de guerra”.

Este colóquio, organizado pelo Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ) e pelo Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens (CECL), da FCSH contou com inúmeras figuras do jornalismo da época, assim como vários investigadores, ex-directores de jornais e ex-combatentes que deram o seu testemunho e visão acerca de um tema ainda muito pouco abordado em Portugal.

PROPAGANDA, ACÇÃO E EMOÇÃO 
… havia um desinteresse pela guerra e para a metrópole ela não passava da “festa” das partidas e das chegadas dos barcos

Ana Cabrera, investigadora auxiliar do CIMJ, começou por introduzir o contexto dos jornais da altura. Em maior número, eram controlados por empresas familiares financiadas por grandes grupos empresariais. Mais do que Salazar, Marcello Caetano, compreendeu que poderia utilizar os jornais para fazer propaganda e deixar passar “Acção e emoção”. No entanto, foi também a época onde as redações dos jornais começaram a ser substituídas por uma geração mais nova. A geração das crises académicas, acabada de sair das faculdades.

Por outro lado, o jornalismo nas colónias tinha outros contornos. Se na Metrópole os jornais eram lidos por quase toda a gente na capital, nas capitais das províncias ultramarinas os jornais serviam apenas a população colonial, os poucos que sabiam ler. Os restantes não tinham acesso à leitura de jornais, quer por não terem dinheiro, serem analfabetos ou não lerem o português. O também investigador Silva Torres lembra que por isso a Rádio era o meio de comunicação mais ouvido mas, também por isso, menos controlado pois existiam as emissões piratas controladas pelos movimentos de libertação. Essas emissões em onda curta só podiam ser controladas impedindo a que a população no geral não conseguisse ter acesso a receptores de onda curta, cuja taxa era 10 vezes mais cara que os de onda média. Era este meio de comunicação clandestino que dava mais destaque à guerra. Se havia algum destaque no início das operações militares na imprensa escrita das colónias no inicio da guerra, à medida que se foi prolongando as notícias foram-se dissipando. Só a rádio clandestina continuava a emitir notícias sobre este assunto.

Joaquim Letria, figura incontornável do jornalismo português, lembrou que a primeira vítima da guerra é a verdade. No geral, havia um desinteresse pela guerra e para a metrópole ela não passava da “festa” das partidas e das chegadas dos barcos que iam ou vinham da guerra, e que basicamente eram as imagens que transpareciam na comunicação social. A maior parte dos repórteres incorporados na operações não eram jornalistas.

Apesar do virtual desaparecimento da guerra colonial na imprensa portuguesa ao longo de toda a guerra, houve logo no início um acontecimento que obrigou a que o regime deixasse transparecer algumas notícias sobre o conflito nas colónias.

A imprensa internacional, que já estava a dar muita atenção ao assalto do Santa Maria, deu também muita atenção aos acontecimentos de 4 de fevereiro em Angola. A pressão internacional quase que obrigou que as notícias sobre os movimentos independentistas fossem relatados em Portugal, embora de forma a evitar expressões como “independentistas”. As palavras escolhidas para caracterizar os atacantes ficavam-se por “desordeiros”. Ao invés, a imprensa estrangeira dava todo o destaque os sentimentos independentistas.

Aarons de Carvalho abordou a censura nos tempos de Salazar e Marcello Caetano, referindo que este último aproveitava e geria muito melhor os meios de comunicação social do que Salazar. A censura em Portugal também variava entre uma censura reativa e impositiva, dependendo da época mas muita dela era auto imposta pelos próprios jornalistas, para evitar que os próprios jornais fossem suspensos. A censura militar era muito mais rígida que a civil.

O Investigador José Filipe Pinto lembra que, com a chegada da guerra às colónias, foi necessário criar comissões de censura, por exemplo, em Angola. Essa censura versava essencialmente sobre assuntos económicos, de cariz social e de abusos de poder por parte dos poderes central e regional. Havia por vezes o que se chamava de “excesso de censura”, que acontecia porque os censores eram pagos à peça e quanto mais censuravam notícias e reportagens, mais recebiam.

Assim como eram visadas todas as notícias sobre os terroristas e como muitas vezes o seu armamento era superior ao português.

O jornalista Cesário Borga, que agora se dedica à investigação académica, fez comissões na Guiné e lembra como tentou fazer jornalismo na ex-colónia. Era um jornalismo militarizado e camuflado, muitas vezes reduzido aos comunicados oficiais. Por exemplo, nos relatos da guerra que passavam, as mortes eram anunciadas como “baixas”. Borga tentou fazer uma vez uma reportagem no mato com os anciãos indígenas mas acabou por ser censurado. Admite porém que na Guiné a cobertura era feita de maneira diferente, porque António de Spínola, governador da região, gozava de um estatuto especial que lhe permitia falar da guerra à vontade.

A GUINÉ DE SPÍNOLA 

Foi mais ou menos repetido durante todo o colóquio que havia um desinteresse generalizado pela guerra tanto na metrópole como nas colónias, muito por causa do tampão de informação que não deixava passar notícias do que estava a acontecer no Ultramar. No entanto, a Guiné de Spínola tinha um estatuto diferente.

João Palmeiro, ex-militar na Guiné e Presidente da Associação Portuguesa de Imprensa, lembra que a censura militar numa guerra é normal e necessária até. Enquanto director de informação na Guiné era sua função receber os jornalistas estrangeiros e levá-los onde queriam. João Palmeiro sentia-se livre de mostrar o que os jornalistas queriam porque não recebia nenhuma informação específica de como se comportar. João Palmeiro chegava a escrever os aerogramas dos seus soldados e relatava o que se passava na Guiné, pelo que dava para perceber que a censura naquela província era mais leve do que no resto das colónias. Essa sua liberdade levou-o a ser afastado do lugar pela PIDE.

Otelo Saraiva de Carvalho reforçou esta ideia na sua intervenção. A Guerra Colonial nem em família podia ser discutida. O constante envio de tropas para as colónias era justificado com a necessidade de manter a paz e a segurança dos territórios portugueses ultramarinos perante a ameaça das potências estrangeiras que queriam as riquezas das províncias.

Otelo, enquanto secretário de imprensa do general Spínola programava tudo com os jornalistas estrangeiros para que a atenção fosse dada toda a como a Guiné evoluiu desde que Spínola ficou à frente daquela província..

José Manuel Barroso reafirma que havia uma ideia nebulosa sobre a Guerra Colonial que o pouco que passava para a opinião pública era que de um lado estavam os maus, (os turras) e do outro os bons (os tugas). Na Guiné já havia uma noção muito desesperançosa sobre uma solução para as guerras de África pelo que Spínola já estava a preparar a sua agenda.

Spínola redigia, através da sua assessoria de imprensa, notícias que comunicavam a “realidade” da Guiné e do trabalho de Spínola à Metrópole. O número de mortos dos dois lados, por exemplo, apesar de ser comunicado era previamente revisto. Havia canais paralelos de informação que distribuíam as notícias sobre o que se passava na Guiné. Havia portanto duas verdades. A da guerra em geral e a da guerra interna e politica de Spínola.

O jornalista Avelino Rodrigues recorda os seus tempos na Guiné. Lembrou que os jornalistas que ficavam deslumbrados com o espetáculo da guerra mas que mostravam apenas e sempre apenas o lado das tropas portuguesas. Em Bissau por exemplo respirava-se a guerra mas não se a sentia.

Na Guiné, Spínola usava os jornalistas especificamente para divulgar a sua visão alternativa da guerra e Avelino foi chamado à provínicia por ser de esquerda, quase como que para validar a visão de Spínola.

Foi por isso que as crónicas de Avelino Rodrigues foram dos primeiros trabalhos verdadeiramente jornalísticos sobre a guerra em Portugal. Só uma entrevista ao General Spínola não passou porque Marcello Caetano interveio e a sua censura negociou o conteúdo dessa entrevista.

MOÇAMBIQUE E ANGOLA 

A escritora Manuela Gonzaga lembra-se que a guerra era como se não existisse, quer na Metrópole quer nas próprias províncias. Em Lourenço Marques não havia guerra mas os movimentos das tropa seriam constantes e cada vez maiores. Nas grandes cidades pouco se sabia do porquê dessas movimentações e ninguém queria saber. A Guerra Colonial, para muitos, pouco mais era do que desfiles militares a fazer a apologia do regime e da glória de Portugal e o modo como se exibiam era como se não fossem fazer a guerra. No fim, o que transparecia era que todos os guerrilheiros eram vencidos ou se rendiam. O numero de mortos era anunciado nos jornais mas sempre em página par e num canto inferior. Manuela Gonzaga recorda-se de ver regressar os soldados das operações no mato, solitários, cansados e abandonados e de como absolutamente ninguém falava disso. Os relatos das operações eram tardios e embora deixassem transparecer o que se passava eram sempre redigidos de modo optimista e com a certeza da vitória..

Rodrigues Vaz, ex-director do jornal de Angola explicou como se procedia à censura. “A Pátria não se discute” era o mote inicial para tudo o que era escrito. A censura começava sempre com um esclarecedor “Não se meta nisso que só lhe dá chatices” por parte da PIDE, quando um jornalista pretendia saber um pouco mais. Daí o jornalismo em Angola “ser muito bem comportado”. Exercer jornalismo naquela província era essencialmente exercer autocensura. As reportagens eram notas de imprensa, já com fotos pré-escolhidas, preparadas pelo centro de informação do regime que se dedicava a controlar e a emitir as notícias.

Era por isso que a guerra nas grandes cidades era um pouco como “A Guerra” do Solnado e toda a gente estava convencida que já estava ganha.

O General Fontes Ramos, que comandou uma companhia em Moçambique, explicou como as forças armadas portuguesas tinham um comportamento mais pedagógico relativamente às populações indígenas. Lembrou que como a guerra em Moçambique ficou inicialmente pelo norte e o sul era controlado pelas ações pedagógicas dos militares, acontecia que a população urbana estava distante da realidade da guerra. Na imprensa não aparecia uma linha ou uma imagem sobre a situação de guerra. Como exemplo, num dos jornais publicados em 1970, dos 184 números só em 16 surgiram notícias sobre a guerra e o pouco que falavam referia-se apenas à chegada e partida dos contingentes. Só a partir da operação Nó Górdio é que começaram a surgir notícias com mais frequência acerca dos resultados das operações mas ainda assim apenas eram noticiadas as derrotas dos terroristas.

A cobertura jornalística era portanto quase inexistente, pelo menos como tal a conhecemos hoje, quer pela necessidade de filtrar informação essencial quer pelo desejo do regime em esconder a realidade da guerra. Os investigadores propuseram a possibilidade de uma das razões pelas quais a guerra colonial durou tanto tempo ser precisamente o fraco conhecimento que a opinião pública tinha do que acontecia nas províncias ultramarinas. A guerra era como se não existisse e os despojos eram varridos para debaixo do tapete.

SALAZAR, O IMPÉRIO E O TELEJORNAL 
havia soldados cujo regresso era feito de noite, muitas vezes sem dar notícia disso às famílias

O professor Rui Cádima encerrou a sessão com a apresentação do seu trabalho sobre o Telejornal e a Guerra Colonial e de como se passou de uma ausência da ideia de Império na então limitada televisão portuguesa para o uso propagandístico deste meio, primeiramente com Salazar e depois com Marcello Caetano.

Apesar de Salazar ser avesso à comunicação social, os acontecimentos do 4 de Fevereiro em Angola forçaram a que o regime, devido às pressões internacionais, tivesse de tomar as rédeas à informação sobre a questão colonial. O Telejornal da RTP (TJ) foi o meio privilegiado para essa propaganda.

Antes havia um quase total desconhecimento das colónias ou da sua vida na metrópole, muito menos havia referências ao pluricontinentalismo plurirracial que é a base do império português. Foi a pressão da ONU em 59 que levou Salazar a começar a dirigir-se à população sobre a unidade e coesão de Portugal e das suas colónias. Notícias sobre visitas dos governadores às suas províncias e outras peças avulsas sobre os acontecimentos mais banais das colónias começaram a passar uma ideia de uma normalidade portuguesa por todas as províncias. Com a restante África em ebulição independentista, o regime pretendia passar a “paz admirável” dos territórios portugueses.

1961 foi o ano em que tudo mudou. O ataque ao paquete Santa Maria e à prisão em Luanda, levou a que a informação passada no telejornal tivesse que lidar com a realidade da paz afinal não ser tão admirável.

O TJ foi o principal meio de informação e propaganda para transformar os movimentos independentistas em “actos de pirataria” perpetrados por “bandoleiros”. Era também no telejornal que se apelava as populações para participarem em campanhas de solidariedade contra as “vítimas do terrorismo”. Apesar da filtragem de notícias ainda assim passava uma ou outra peça de deixava ver a ponta do véu da realidade das ações militares e das baixas causadas pelos combates. Estes desenvolvimentos obrigam a uma introdução de um estilo propagandista mais agressivo que visava agora a afirmar a “inquestionabilidade do domínio colonial português em África”, através de reportagens, editoriais e comentários. Era a forma de legitimar perante a opinião pública a campanha militar de defesa contra a ofensiva exterior ao império. De tal modo que nesta fase inicial a televisão era reconhecida como a retaguarda das operações militares, um “Soldado chamado Televisão”.

No início da guerra estava-se convencido que a paz chegaria rápido, mas não aconteceu. Nos finais de 61 com alguns avanços no Norte de Angola, informava-se com optimismo que as acções militares passariam a dar lugar a acções de policiamento.

Durante os 15 anos das acções de policiamento o regime continuou a usar o telejornal como meio de propaganda para justificar a continuação da guerra. Apesar da guerra continuar a levar dezenas de milhar de soldados todos os anos, a partir do ano de 1964 o tratamento da guerra nas RTP passou a ser de “evocação” e passou-se a assinalar os acontecimentos como uma efeméride. O problema ultramarino segundo o Professor Rui Cádima, passou a ser “arqueologizado em matéria de imagens e reportagens de guerra”.

Rui Cádima encerrou o colóquio agradecendo à Comissão Organizadora do Colóquio, principalmente a Sílvia Torres, a aluna de doutoramento da FCSH que reuniu as pessoas necessárias para realizar o colóquio. Cádima pediu a que se continuasse com o tema anualmente, de forma permanente como que um núcleo de investigação para continuar com o muito trabalho que ainda há a fazer nesta área, algo que foi bem acolhido com a ADFA a oferecer-se para colaborar.

OS SOLDADOS ESQUECIDOS 

De fora disto tudo ficavam as histórias dos soldados, de cada soldado que ia e regressava. Se as partidas dos soldados tinham alguma cobertura, já o regresso dos mesmos era mais discreto e igualmente manipulado na opinião pública. Havia soldados cujo regresso era feito de noite, muitas vezes sem dar notícia disso às famílias e eram enviados para casa e inseridos de volta à vida quotidiana de forma quase como se dela nunca tivessem saído. As notícias do regresso das tropas equivaliam-se às das suas partidas. Como algo rotineiro e normal e mostrado como uma festa. Os soldados, muitos deles da província, regressavam sem uma palavra e como se nada tivesse acontecido. De regresso junto aos seus, inteiros ou estropiados, todos foram varridos para debaixo do tapete da normalidade sem que quem cá ficou alguma vez soubesse na verdade o que passaram na sua ausência.

Do que que lhes aconteceu na guerra, das coisas que viram, dos sítios por onde passaram, quanto tempo lá estiveram, nem uma palavra. Nem para o público e, muitas vezes, nem em privado. Foram necessárias décadas em Portugal para se ter a real noção do drama vivido em centenas de milhar de lares portugueses. A geração que construiu a democracia foi uma geração que regressou da guerra sem que o Portugal que transitou para a liberdade tivesse tido alguma vez a noção real dos 15 anos de Guerra Colonial.

Foi preciso um grupo de técnicos e ex-combatentes pioneiros para trazer ao mundo a realidade da guerra e dos traumas associados. 22 anos para reconhecer que os homens que regressaram do Ultramar não foram os mesmos, 22 anos para começar a haver jornalismo sobre essa realidade.

Ainda assim é uma realidade que vive escondida na casa de muitos ex-combatentes que um dia regressaram de noite sem ninguém á espera deles e, nas sombras e no medo, caminharam por um túnel até às suas casas sem que aqueles que o rodeiam tivessem alguma vez conhecimento disso. Ainda falta fazer muito jornalismo sobre a guerra colonial.

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