Por: João Sobral *
Intervenção do Presidente da Direção da APOIAR, João Sobral, acerca das, “Respostas Legais: Tramitação do Processo de Qualificação como DFA por Stress de Guerra” no seminário internacional de reflexão sobre os dez anos da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Stress de Guerra, realizado na sede da ADFA, dias 27 e 28 de setembro de 2012
A APOIAR agradece o convite que nos foi endereçado pela ADFA para participar neste seminário internacional ”Reflexão sobre uma década de funcionamento da Rede Nacional de Apoio. Muito obrigado a todos aqueles que me antecederam. Pelas suas intervenções neste seminário, pela boa fé que manifestaram e pelo desejo comum de encontrar soluções e compromissos positivos.
Quero agradecer a todos aqueles que individualmente ou em equipa têm dedicado o seu tempo e a sua vida profissional na investigação e tratamento do stress pós traumático de guerra – PPST – em Portugal nos últimos 40 anos .
É graças aos seus esforços e dedicação que alguns ex-combatentes com o diagnóstico de stress de guerra, hoje conseguem alguma qualidade de vida, na qual eu me incluo.
Obrigado em nome de todos os doentes com PPST, pela vossa dedicação. Nos hospitais, nos centros de saúde , nas associações e nas universidades. As, associações onde o acompanhamento direto, clinico, psicológico e social, se faz com os recursos disponíveis, que como se sabe são escassos, mas a sua aplicação tem sido de um modo geral funcional e positiva.
Vou situar a minha intervenção na tramitação dos processos para classificação como DFA dos ex-combatentes doentes com PPST stress pós traumático de guerra e tentar refletir sobre o que é ser candidato a DFA tal como tem sido até agora, passada mais do que uma década da implementação deste sistema de avaliação em Portugal.
Ser DFA só é possível se, ao doente, depois de uma longa avaliação clinica, psiquiátrica, psicológica e social, lhe for atribuído 30% de desvalorização na junta médica militar. A tramitação processual inicia-se nos centros de saúde, nas ONG como APOIAR, nos serviços de psiquiatria hospitalar do Serviço Nacional de Saúde.
A introdução desta percentagem (30%) numa doença mental crónica, evolutiva e incapacitante (reconhecida como tal por toda a comunidade cientifica, e já reconhecida aqui neste seminário) torna esta avaliação à partida dependente de uma tabela incapacidades, da avaliação da direção clinica do Hospital Militar Principal confirmada na junta médica militar.
Estamos a falar de uma doença crónica, evolutiva e incapacitante. Reconhecida pela OMS e aprovada no parlamento português por uma lei do estado, desde 1976 (lei 43/76 e 46/99). É um assunto que se arrasta no tempo sem que se tenha verificado até à presente data uma efetiva resolução.
Verificamos que os longos anos de demora na elaboração dos processos e qualificação como ”DFA’ é absolutamente insustentável e censurável. Num inquérito que a APOIAR realizou recentemente a nível nacional, 100% dos inquiridos não aceitam e não compreendem a demora na resolução dos problemas, tal como estão, dos ex-combatentes doentes com PPST.
Pessoalmente sinto revolta e tenho vergonha de mim, por ser como sou e aceitar esta situação. Tenho vergonha e sinto-me revoltado pela minha passividade até hoje, em ouvir tantas desculpas ditadas pelo orgulho e vaidade para reconhecer um erro, a tanta relutância em esquecer a antiga posição, voltar atrás e mudar o futuro.
Faço parte de uma geração que durante 14 anos, lutou, morreu e regressou doente de um percurso que era já ali. Eram apenas alguns meses, dois, três anos… Para alguns foi fácil, para outros difícil mas foi horrendo e definitivamente marcante para quem regressou doente. Doenças do foro mental ou físico, adquiridas ao serviço de Portugal. Por aquilo que passámos, nos diferentes cenários de guerra, ao longo de 14 anos, fomos tocados por uma doença que não pediu licença para entrar. Instalou–se e ficou para sempre.
É uma doença crónica, progressiva e incapacitante, onde não há próteses para a mente. Não sou eu que o digo! É a classe médica e cientifica mundial. Uma doença adquirida ao serviço do país. Nós, os doentes com PPST também tirámos os nossos cursos, iniciamos as nossas profissões, constituímos família, temos filhos, também somos avôs, só que estamos a pagar um preço diferente no dia a dia nestes últimos 50 anos e vai ser assim até ao final das nossas vidas.
O curso e as profissões existem mas não conseguimos rentabilizá-las. Não por incompetência mas por incapacidade provocada pela doença. A rentabilidade ficou no princípio da vida profissional, não porque não quiséssemos mas por incapacidade motivada por uma doença que desconhecíamos que tínhamos até à sua descoberta nos finais dos anos 80, inicio dos anos 90 do século passado.
A família, ou foi destruída, ou vive doente. O caminho da felicidade não existe. ”Isso foi antes de estarmos doentes”. A vida de cada um está espelhada naquilo que hoje temos: ”nada”. Para alguns nem família, nem percurso profissional, nem capacidade financeira, nem amigos, resumindo: ”nada”. E quem nada tem, nada perde”!!! Daí o caso mais mediático em Beja e outros que todos os dias vão surgindo.
Mas temos: um percurso de doença crónica com flashbacks , muitas noites sem dormir, pesadelos, solidão, fobias, depressões, internamentos, avaliações médicas e psiquiátricas, avaliações psicológicas, toneladas de medicamentos, exames de rotina, violência, espancamentos, prisões, álcool e idas à urgência onde ninguém percebe o que se passa. Para além de outros diagnósticos que nos vão dizendo ter origem no PPST.
”Os horrores da guerra” e a doença adquirida, não se medem na CPIP DSAJ, DEJUR ou outro qualquer departamento da estrutura militar no processo de avaliação. Trocaria sem hesitar com quem me avalia.
A questão do nexo de causalidade é necessária? É, desde que seja definido por quem está habilitado a fazê-lo. Só os médicos, só técnicos de saúde mental têm essa competência e têm conhecimento cientifico para o fazer. Estamos a falar de uma doença mental com influência brutal no sistema nervoso. Não estamos a falar de guerra. A guerra foi o meio que provocou a doença e não pode ser o violador a avaliar a vitima. Sem nexo de causalidade não pode haver diagnóstico. Sem nexo de causalidade nenhum processo pode passar da fase inicial do modelos 1 e 2 .
Respeite-se então os técnicos de saúde mental. Os médicos de saúde familiar e clinica geral, psiquiatras, psicólogos clínicos, assistentes sociais, as histórias clínicas, as dezenas de avaliações psicológicas, avaliações psiquiátricas, sociais, familiares e os percursos de trabalho interrompido por doença.
O IRS é um documento importante na vida dos portugueses que pode ser utilizado como prova da capacidade financeira do requerente quando este solicita apoio financeiro do estado. Até hoje não foi utilizado.
Mas é nos homens doentes e famílias que penso neste momento. Podendo dizer com toda a frontalidade que a regra de ouro de qualquer contrato médico/social é a defesa dos mais desfavorecidos. É o compromisso que existe entre o Estado Português e as associações como a APOIAR, A ADFA e outras que prestam serviços sociais e de saúde.
Estas devem tornar este processo limpo, sem interesses escondidos. Quem tem direito a ser apoiado deve sê-lo sem rodeios, dentro daquilo que tem direito por lei. Ao Estado cabe-lhe fiscalizar, cumprir e fazer cumprir a Lei.
Acredito que vamos encontrar uma solução para terminar com a injustiça instalada na tramitação dos processos para qualificação como DFA por PPST.
As palavras infelizmente não mudam a realidade. Mas as palavras ajudam-nos a pensar, a tomar consciência e a consciência essa sim pode ajudar a mudar a realidade. Foi criado um Labirinto em volta dos processos que não serve quem está doente e os sintomas da doença não estão a ser peça importante e decisiva na avaliação final.
Temos ex-combatentes doentes com PPST que vivem situações de dificuldade e de pobreza que necessitam com urgência de apoio do Estado Português. Estes não podem ser reconhecidos por lei como vitimas da guerra e ao mesmo tempo o inimigo e o alvo abater.
Podia dar vários exemplos individuais de negligência e arrogância de alguns avaliadores mas prefiro não o fazer. Digo apenas que dos possíveis 55.000 homens com a doença crónica de stress de guerra (bem divulgado por todo o país), acredito que não sinalizamos mais de 20.000. No entanto só cerca de 2.000 ex-combatentes com PPST estão sinalizados como máximo. Podem ser apenas 400 ou 500?
Fala-se normalmente de 1 milhão de ex-combatentes mas esses são os que estiveram em África, não os que regressaram doentes com PPST. A realidade é bem diferente. Estes números globais -1 milhão – servem para baralhar e enganar a população em geral e os menos informados . A realidade é que em Portugal, esta relação guerra/doença adquirida, e a justa reposição da capacidade de ganho perdido, estão como estão desde a 1ª Guerra Mundial.
Ao contrário do que devia ter sido feito, foi criado um ciclo de pobreza e doença a que chamamos labirinto que impede que o sistema funcione onde o avaliador é Rei e Senhor de um processo que não lhe pertence e que não tem prazo para terminar. Nós os doentes, não podemos ser hoje, em 2012, o inimigo abater.
O nosso país conseguiu no 25 Abril de 74, dar um passo para terminar uma guerra que findou em Outubro de 1975. Bem ou mal este ciclo fechou-se, mas os mutilados da guerra ficaram. Ficaram os mutilados físicos e os mentais e, embora com uma legislação idêntica, Lei 43/76, são doentes completamente diferentes e não podem ou não deviam estar a ser avaliados da mesma forma nem pelos mesmos parâmetros.
Dá-nos a sensação que estamos a lidar com gente insensível ao problema e muitos por pura ignorância. Simplesmente desconhecem ou não querem saber. Guerra de guerrilha ou guerra civil, isso não existiu. Tiros, morteiradas, roquetadas, confusão e mortes, não existiu. Centenas e centenas de mortes, valas comuns, mortes de inocentes, homens, mulheres, crianças e de camaradas, não existiu. Desconhecem!!
Desconhecem mas perdem uma oportunidade! Uma oportunidade política única! Que é a seguinte: onde nada está feito é o momento de fazer alguma coisa de positivo. Marcar a diferença de quem nada fez, ou fez que fez e nada fez.
Precisamos de mudança na forma de avaliação dos processos para DFA por PPST. Não podemos ficar à espera que as coisas se resolvam desta maneira, confusa e antidemocrática. Precisamos de uma ideia nova que nos traga a mudança deste labirinto. Precisamos de alternativas e há sempre alternativas desde que queiramos encarar os problemas e haja vontade politica para o fazer. Hoje, pode ser o momento da viragem.
A APOIAR já apresentou, nos locais certos, algumas alternativas que, sem mexer na legislação, podiam encurtar o período de avaliação. Até hoje não tivemos nenhuma resposta destas instituições. Apresentámos a situação da Tramitação dos Processos e da situação em geral junto do Provedor de Justiça que, após avaliação e exposição dos nossos problemas junto do MDN nos informou da resposta do Ministério na integra mas que não vou reproduzir. A resposta do Provedor refere que a análise do MDN se limita a identificar aquilo que todos já conhecemos, referindo no final uma nova metodologia (que ainda desconhecemos) cujo resultado não se fez sentir até hoje.
Em resposta a esta informação do, o Provedor tirou a seguinte conclusão :
”Embora o diagnóstico da origem do problema de tais atrasos esteja corretamente efetuado, não é indicada qualquer medida concreta que permita concluir que os atuais cerca de 1000 processos que aguardam análise e decisão no DSAJ e os 462 processos pendentes na CPIP, irão ser decididos em tempo útil e razoável.”
Reconhece, portanto, o Provedor de Justiça que o sistema não funciona nem vai funcionar continuando como está.
Tendo como exemplo o atrás descrito, digo eu como Presidente da Direção da APOIAR, e como já referi anteriormente, as palavras infelizmente não mudam a realidade. Mas as palavras ajudam-nos a pensar e a tomar consciência, consciência essa, sim, pode ajudar a mudar a realidade.
É necessário sinalizar os casos urgentes que estão no sistema e resolvê-los antes que os interessados morram. O nosso futuro é já muito curto a média idades ronda os 70 anos.
Está perfeitamente identificada toda a problemática que envolve a tramitação dos Processos como DFA por PPST. Os estudos realizados nos Estados Unidos, Inglaterra, Israel e Portugal sobre este doença, obrigam-nos a exigir transparência na avaliação dos serviços militares, médicos, psiquiátricos, psicológicos e sociais
Sem nexo de causalidade não pode haver diagnóstico. Isto é ponto assente em todo o mundo menos em Portugal. O diagnóstico não pode ser colocado em causa por um processo burocrático jurídico que nada tem que ver com o momento do trauma. A percentagem de ex-combatentes doentes em Portugal é insignificante em relação ao número de mobilizados e participantes no teatro de guerra em África ( cerca de 0,002%). Nunca por nunca o PPST, stress de guerra, pode ser confundido com a generalidade dos ex-combatentes.
Depois desta análise, desta sumária avaliação podemos dizer o seguinte: o futuro para os ex-combatentes doentes e seus familiares é já muito curto.
Temos uma idade média de perto do 70 anos. Mais 10 anos e o futuro para muitos já terminou, porque vão morrer. É preciso reter estes números e dizer com clareza o que deve ser feito para organizar o conhecimento desta realidade e resolvê-lo em tempo útil com dignidade entre todas as partes.
A liberdade de viver e não de sobreviver só é possível quando se dá às pessoas a sua irreversível dignidade pessoal. É preciso separar o acessório do fundamental utilizando uma forma simples de controle.
O Estado Português, as Associações, os Hospitais, os Técnicos de Saúde Mental e a investigação nas Universidades reconhecem a doença PPST. O Estado investe dinheiro dos contribuintes, faz protocolos com as Associações, reconhece a doença e os técnicos. Todo este envolvimento existe de forma exemplar. Mas é necessário e urgente a conclusão dos processos que têm entre 10 a 14 anos. Esta conclusão deve ser realizada de imediato. Ontem se possível!
Os novos processos e a sua decisão devem terminar em tempo útil. O Ministério da Defesa Nacional e o Ministério da Saúde devem organizar, em colaboração com as Associações e Hospitais, mais formação para os Técnico de Saúde Mental, mais fiscalização eficaz e menos “deixa andar até morrer”.
Não podemos ser ingénuos, não podemos enunciar a reivindicação de um processo necessário para reparar o que de mal está feito se não tivermos a certeza que o mesmo é viável de resolução.
Os 30% de incapacidade não podem continuar a ser atribuídos como medalha de mérito de guerra para um subsídio que se dá entre amigos deixando de fora os doentes. Ou os políticos têm coragem para modificar o que está errado ou ninguém nos vai salvar porque moribundos já estamos. Enquanto seres humanos ainda vivos, pior não podíamos estar.
Nós, os doentes, não nos podemos iludir, ou nos salvamos, ou ninguém nos salva. Somos doentes com PPST, adquirida ao serviço de Portugal. Não fizemos um contrato de trabalho com o Estado Português, nem pertencemos aos quadros do Ministério da Defesa Nacional. Somos civis, que foram incorporados no serviço militar obrigatório para lutar por Portugal de onde uma percentagem regressou doente para a vida civil.
Quem pensou este modelo de avaliação não colocou a existência de uma ”cominação”. Tempo limite de feitura dos processos em cada passagem nos diferentes departamentos. O legislador tem obrigação de saber isto, mas não o fez. Desta forma seriam de imediato evitados os abusos de poder e reposta a legalidade em tempo útil sem prejuízo para o utente e o Estado Português.
Os doentes com PPST não têm espaço, nem idade, nem saúde para esperar sem limite de tempo. Temos uma idade média de 70 anos e até hoje foi feito muito pouco do muito que há para fazer. Existe o conhecimento do que está errado. Urge resolver esta situação. As dificuldades atuais existentes no País, não nos dizem nada, porque já estamos em crise há 40/50 anos. Hoje é o dia para iniciar o que falta fazer.
A pergunta que se impõe neste momento é a seguinte, resumida em cinco pontos:
1. Hospital Militar Principal. 98% das avaliações são entre 0 e 10%. Porquê? Se os ex-combatentes foram sinalizados pelos técnicos de saúde mental como doentes com Stress de Guerra
2. A Estrutura Militar do Exército não está preparada para dar resposta às tarefas atribuídas
3. Toda a estrutura jurídica está fora da realidade
4. A avaliação final na Caixa Geral de Aposentações está desajustada e penaliza o requerente.
5. O poder político tem mostrado incapacidade e conhecimento mínimo para resolver o assunto
A quem interessa esta situação?
Se o objetivo era apoiar e repor a capacidade de ganho perdida m motivado pela doença, a ex-combatentes com stress de guerra, o objetivo até hoje falhou totalmente. Repito: a quem interessa esta situação tal como está? Estamos cansados de ouvir e dar explicações sobre a doença. Precisamos da resolução, solução eficaz e rápida. Esta só pode ser politica.
A solução, (tal como está até hoje este processo avaliação) só pode ser política, utilizando um modelo simples, rápido mas eficaz.
Da nossa parte, APOIAR, fizemos o nosso trabalho, a ADFA e Federação estão a fazê-lo, damos soluções viáveis.
Estamos disponíveis para o diálogo, desejamos que o poder político dê a resposta correta e que a realidade não lhes passe mais uma vez ao lado.
A todos, muito obrigado.