Por Susana Oliveira (*)
A ideia de que uma reacção traumática pode ocorrer sem uma exposição directa a um trauma tem sido considerada na literatura apenas muito recentemente.
A explicação que tem sido mais considerada na literatura, sobre a presença de sintomatologia de stress traumático nas esposas dos veteranos de guerra e nos seus filhos, é a de traumatização secundária. O pressuposto subjacente é de que existe um mecanismo de contágio do indivíduo traumatizado para os elementos com quem estabelece relações significativas, de forma que estes também desenvolvem sintomas idênticos. Segundo Figley (1998), um dos autores que mais se tem dedicado a esta área, o Stress Traumático Secundário é a experiência de tensão e distress directamente relacionada com as exigências de viver e cuidar de alguém que apresenta sintomas da Perturbação de Stress Pós-Traumático (PTSD).
Embora a relação causal entre disfunção familiar e experiências de guerra não seja totalmente clara, a investigação com as famílias dos veteranos de guerra tem revelado um padrão. As famílias dos ex-combatentes com PTSD apresentam mais problemas conjugais, evidenciam mais comportamentos de hostilidade e agressividade e revelam mais desajustamento marital. Normalmente, o ex-combatente sente que é completamente dominado pelo seu “Stress de Guerra”e teme os efeitos que a doença pode ter na sua família. Por seu turno, os membros da família sentem medo e culpa quando os sintomas de PTSD do ex-combatente ocorrem.
No seio destas famílias existem comportamentos, próprios da PTSD, que acabam por afectar todo o sistema familiar. O evitamento e a dificuldade em sentir e exprimir afecto, característico da PTSD do ex-combatente, acaba por condicionar e restringir toda a família ao contacto com o mundo social. Por outro lado, o evitar aborrecer ou incomodar o ex-combatente, o desencorajar a partilha das memórias traumáticas, achando que vai prejudicá-lo e o assumir de todas as funções familiares por parte das esposas, acaba por contribuir para a manutenção do próprio comportamento de evitamento do ex-combatente e para a anestesia emocional dos outros membros da família. A diminuição da capacidade de afecto, que protege o ex-combatente de tudo o que possa sentir, acaba por promover o distanciamento e a não expressão de afectos em relação à sua companheira e filhos. A ideação suicida também é frequente e está associada a sentimentos de culpabilização do veterano de guerra, o que faz com que a família viva em sobressalto, principalmente se houver armas em casa. O recurso a álcool e drogas é outro problema que se relaciona com a PTSD, pois o recurso a estas substâncias para lidar com a dor acarreta comportamentos de impulsividade e por vezes violência física, levando ao distanciamento dos familiares devido ao medo.
Numa investigação com famílias de soldados israelitas, que combateram na guerra contra o Líbano em 1982, apurou-se que taxas mais elevadas de PTSD estão associadas a menos expressividade, menos coesão, mais conflitualidade nas famílias e mais sintomatologia psiquiátrica nas mulheres e os filhos dos ex-combatentes com PTSD. Num outro estudo com famílias de ex-combatentes australianos, da Guerra do Vietname, verificou-se que estes experienciavam mais conflitos e as suas parceiras eram mais depressivas quando comparadas com outras mulheres.
No nosso país não existem praticamente estudos sobre o impacto da PTSD dos ex-combatentes nas suas famílias, nomeadamente nas suas esposas e filhos. Pereira & Ferreira (2006) e Pereira (2003) têm afirmado a existência de PTSD nas esposas dos ex-combatentes. Os primeiros autores, numa amostra de 58 esposas, encontram 78% com sintomas de Perturbação Secundária de Stress Traumático (PSST). Lopes Pires e seus colaboradores (2006) numa amostra de 159 pessoas (72 ex-combatentes do Ultramar, 50 esposas e 23 filhos mais velhos e 13 filhos mais novos) encontram também uma influência directa da sintomatologia dos ex-combatentes sobre a das suas esposas e da sintomatologia destas sobre os filhos, sobretudo nos filhos mais velhos.
Relativamente à prevalência de PSST nos filhos de ex-combatentes da Guerra Colonial com PTSD, não existem dados, contudo, com base em dados clínicos, verifica-se que estes filhos apresentam depressão, ansiedade, problemas de comportamento, insucesso escolar e imaturidade, o que pode estar associado a atitudes paternas de hiperprotecção, atitudes controladoras e rejeitantes, a rigidez e ao comportamento de agressividade do pai.
(*) Psicóloga Clínica
Publicado originalmente no nº 50, de Janeiro e Fevereiro de 2008, do Jornal APOIAR