Por: Humberto Silva
O nome completo do que hoje simplificamos no acrónimo RNA é já em si um reflexo da complexidade burocrática em que se transformou parte importante do processo de apoio desta rede, originada a partir da Lei 46/99. A doença do stress de guerra esteve incógnita durante décadas e só foi oficialmente reconhecida por esta lei em 1999.
Dez anos depois, a RNA reduz-se a cinco associações, centradas em Lisboa, Porto, Braga e Tondela, com uma abrangência útil limitada às áreas geográficas.
Significa isto que a Rede Nacional de Apoio não chega ao Alentejo, não chega ao Algarve, não chega ao centro e ao interior do país nem chega às ilhas. E são milhares os ex-combatentes que rumam sem apoio no país real. Esta “Rede Nacional” também inclui os Hospitais Públicos e os Centros de Saúde, mas não é raro que à APOIAR cheguem queixas de utentes, dos médicos de família que desconhecem a lei e olham desconfiados para um ex-combatentes que diz ter problemas e pede apoio.
Por outro lado, muitas vezes são os próprios médicos de família que admitem não terem capacidade para lidar com a situação. É por isso que a APOIAR recebe utentes que vêm do Alentejo e do Centro, assim como do Norte do país. Em suma, passado uma década, a RNA pouco mais passou da casa de partida.
Apesar disso, a APOIAR e as restantes associações têm dado a resposta possível que o serviço Nacional de Saúde não conseguiu ao longo dos anos, alargando mais um pouco a rede de Apoio que antes se confinava aos hospitais psiquiátricos. Tudo isto com um orçamento que se mantém o mesmo desde a sua criação em 2002.
Por sua vez, a RNA não se limita ao apoio clínico. A Lei que a criou também prevê uma compensação ao ex-militar que viu a sua vida afetada pelo trauma psicológico que viveu numa guerra em que foi obrigado a participar Para essa compensação é necessário que o ex-combatente seja considerado Deficiente das Forças Armadas. Esse apoio, essa compensação, tem sido a maior falha da RNA.
Em dez anos de existência, são muito poucos os ex-combatentes a quem, sofrendo de stress de guerra e de outras doenças mentais incapacitantes, apesar de terem direito a apoio médico e medicamentoso, lhes foi reconhecido o direito a uma pensão.
O processo pelo qual têm que passar é de tal forma burocrático, moroso e labiríntico que, para terminar o processo de avaliação psicológica e ultrapassar todos os trâmites jurídicos, um ex-combatente tem de esperar em média 14 anos.
A APOIAR, ao longo do ano de 2012 tem feito chegar o seu protesto e as suas propostas de melhoramento a todas as entidades responsáveis. Organizou um encontro legislativo e levou o seu caso ao Provedor de Justiça que deu seguimento à queixa.
As propostas desse encontro foram entregues na Comissão de Defesa Nacional e agora estão neste momento a serem discutidas e analisadas pela Comissão Nacional de Acompanhamento.
Em cinco anos, esta proposta da APOIAR foi única proposta concreta apresentada aos responsáveis, depois da proposta do Diretor do antigo Departamento de Apoio dos Antigos Combatentes do MDN, apresentada pelo DAAC em 2007 num colóquio que se dedicou precisamente a fazer o levantamento de cinco anos de RNA.
O seminário realizado na ADFA em setembro deste ano foi o culminar de um ano de luta em que se debateu e apelou à resolução do problema com a maior urgência, numa altura em que os ex-combatentes estão mais próximo do fim das suas vidas.
Do seminário retemos várias questões importantes. Uma delas prende-se com a assunção, por parte do próprio exército, da incapacidade e incompatibilidade da sua estrutura para lidar com um processo juridicamente delicado como é a avaliação do stress de guerra.
Outra questão tem a ver diretamente com os atores deste processo. São estes que decidem se um ex-combatente sofreu ou não e se esse sofrimento tem direito a ser reconhecido e recompensado.
A diretora do Hospital Militar Principal, uma das responsáveis pela atribuição das percentagens que, em última análise, decidem se um ex-combatentes tem direito a uma pensão ou não, esteve presente com uma intervenção acerca de questões clínicas.
A preleção de Teresa Babo centrou-se no binómio resiliência/vulnerabilidade, numa análise acerca de como há pessoas mais ou menos resistentes ao trauma e de como essa resiliência ou vulnerabilidade levam cada pessoa a lidar com o trauma. No fundo, diz que pessoas diferentes lidam de formas diferentes com o trauma e que é necessário sensibilizar as pessoas para que lidem de forma positiva com esse trauma para que possam ter melhor qualidade de vida. Nada de errado.
No entanto, durante a guerra colonial, o regime, nas mobilizações obrigatórias em massa, não escolhia os soldados pelos que eram resilientes ou vulneráveis. Oferecia-lhes uma G-3 e enviava-os num porão para África. Assim como, ao longo de 16 anos de guerra colonial, as várias fases da guerra, os vários cenários e os diferentes contextos cronológicos, envolviam necessariamente formas diferentes de abordar e viver a guerra. Logo, as consequências dessas vivência também são necessariamente diferentes, e não dependem apenas da capacidade de resiliência ou de vulnerabilidade de cada pessoa.
Os inúmeros relatos e queixas que recebemos ao longo dos anos na Associação, muitos aventados na comunicação social, quase que nos obrigam a concluir que a maior parte dos decisores, escondidos atrás de conceitos abstratos através dos quais filtram em percentagens o que um ex-combatente sofreu ou deixou de sofrer, não olham para a história, para o contexto e muito menos olham para as pessoas que têm à frente e é essencialmente isso que tem falhado em dez anos de Rede Nacional de Apoio.
Quão abrangente é esta realidade, e até que ponto corresponde à verdade, nunca poderemos saber.
Mas uma estrutura que arrasta um ex-combatente que sofre num processo interminável e muitas vezes sobrecarrega-o com preocupações e ansiedades em cima daquelas das quais já padece não pode ser parte da solução.
Tornou-se um problema.
Se em dez anos a estrutura e os decisores têm falhado, é mais do que necessário reformar essas mesmas estruturas e essas mesmas pessoas.
* (Assessor de Comunicação da Associação APOIAR)
Publicado originalmente no APOIAR nº 77 de ago/set 2012