
Stress de Guerra Secundário: Compreender o Impacto nas Famílias
O stress de guerra secundário é um fenómeno complexo que afeta não só os militares que vivenciam o trauma, mas também as suas famílias. A psicóloga clínica Susana Oliveira, da APOIAR, dedicou a sua tese de mestrado a este tema crucial, explorando os efeitos do stress de guerra secundário em esposas e filhos de ex-militares. Este excerto do seu trabalho visa ajudar a compreender melhor esta realidade.
O que é o Stress de Guerra Secundário?
Estudos sobre o stress traumático, conforme demonstrado por Figley (1998), McCann & Pearlman (1990), e Pearlman & Saakvitne (1995), indicam que indivíduos em contacto íntimo e frequente com vítimas de trauma podem desenvolver sintomas semelhantes. Esta ideia, que deu origem ao conceito de stress de guerra secundário, surgiu inicialmente com Sarah Haley (1974, citado por Matsakis, 1996), que descreveu como o trabalho com veteranos de guerra a perturbou.
Com a introdução do diagnóstico de PTSD em 1980, a consciência dos efeitos do stress traumático para além da exposição direta a situações traumáticas tornou-se mais clara (Catherall, 2004, citado por Matsakis, 1996). A traumatização indireta, também conhecida como stress de guerra secundário, tem sido amplamente estudada em:
- Esposas e filhos de veteranos de guerra (Rosenheck & Nathan, 1985; Solomon et al., 1992; Arzi, Solomon & Dekel, 2000)
- Cônjuges e filhos de sobreviventes do Holocausto (Sorscher & Cohen, 1997; Rowland-Klein & Dunlop, 1997; Baranowsky, Young, Douglas, Keeler & Mccarrey, 1998; Yehuda et al., 2001; Daud et al., 2005)
- Equipas de emergência (Ordi, Tobal, Vindel & Iruarrizaga, 2004)
- Terapeutas de indivíduos traumatizados (McCann & Pearlman, 1990)
Sintomas do Stress de Guerra Secundário e Conceitos Relacionados
Uma variedade de sintomas, incluindo tristeza, depressão, ansiedade, horror, medo, zanga, vergonha, pensamentos e imagens intrusivas, pesadelos, evitamento, embotamento afetivo, mudanças nos esquemas cognitivos, problemas sociais, abuso de substâncias e problemas relacionais, têm sido descritos nestas populações afetadas pelo stress de guerra secundário (Valent, 2002).
O indivíduo com ligação emocional a uma vítima de trauma pode experienciar sintomas semelhantes, mesmo sem a verbalização da experiência traumática, pois está exposto às reações emocionais e físicas do traumatizado.
Este fenómeno tem sido descrito com vários conceitos, muitos dos quais se relacionam com o stress de guerra secundário:
- Vitimização Secundária (Figley, 1982, citado por Figley, 1995b)
- Sobrevivente Secundário (Remer & Elliott, 1988, citado por Figley, 1995b)
- Burnout (Kahill, 1988)
- Traumatização Vicariante (McCann & Pearlman, 1990; Pearlman & Saakvitne, 1995)
- Stress Traumático Secundário
- Fadiga de Compaixão (Figley, 1998)
Apesar de alguma confusão conceitual, alguns autores (Baird & Kracen, 2006; Deighton, Gurris & Traue, 2007) distinguem a Traumatização Vicariante do Stress Traumático Secundário, sendo este último intimamente ligado ao stress de guerra secundário.
A Traumatização Vicariante resulta da exposição e envolvimento empático de terapeutas com histórias traumáticas de clientes, refletindo-se em mudanças cognitivas, afetivas e relacionais. Estas mudanças podem afetar a visão do terapeuta sobre si, os outros e o mundo, com impacto na segurança, confiança, estima, intimidade e controlo, e podem levar à diminuição da motivação, eficácia e empatia (Pearlman & Saakvitne, 1995).
O Stress Traumático Secundário, por sua vez, refere-se à tensão e angústia diretamente relacionadas com a convivência e o cuidado de alguém com sintomas de PTSD (Figley, 1998). É um stress crónico resultante da exposição do indivíduo às experiências traumáticas de outros, e pode associar-se a sentimentos de empatia com as experiências traumáticas do ente querido (Figley, 1998).
Diferenças entre Traumatização Vicariante e Stress Traumático Secundário
Jenkins e Baird (2002) esclarecem as diferenças entre a Traumatização Vicariante e o Stress Traumático Secundário (que engloba o stress de guerra secundário) em quatro dimensões:
- Foco da abordagem: Teoria (Traumatização Vicariante) vs. Sintomatologia (Stress Traumático Secundário).
- Natureza dos sintomas: Mudanças cognitivas (Traumatização Vicariante) vs. Reações observáveis (Stress Traumático Secundário).
- População alvo de estudo: Profissionais de ajuda (Traumatização Vicariante) vs. Familiares de ex-combatentes com PTSD (Stress Traumático Secundário, como o stress de guerra secundário).
- Quantidade de exposição ao trauma das vítimas: Exposição acumulada (Traumatização Vicariante) vs. Uma exposição severa (Stress Traumático Secundário).
Stress de Guerra Secundário e Outros Conceitos
É importante distinguir o stress de guerra secundário do Burnout. O Burnout, um síndroma tridimensional de exaustão emocional, desconexão e falta de realização pessoal (Maslach & Leiter, 2000), é mais geral e não específico do trabalho com pessoas traumatizadas (Deighton et al., 2007), embora Figley (1998) o utilize para explicar alguns sintomas de STSD.
Figley (1998) também aborda detalhadamente a traumatização indireta, oferecendo quatro explicações para o desenvolvimento de sintomas semelhantes aos de PTSD em membros da família:
- Efeitos simultâneos: Todos os membros da família são afetados por um mesmo evento traumático.
- Efeitos vicariantes: A família toma conhecimento de um trauma vivenciado por um membro distante.
- Trauma intrafamiliar: Vários membros da família são traumatizados por um acontecimento dentro do sistema familiar.
- Traumatização secundária: O stress traumático secundário afeta membros da família que estão em contacto com um doente que sofre de PTSD. Esta última é a explicação mais considerada na literatura sobre a sintomatologia de stress traumático em esposas e filhos de veteranos de guerra.
Ausência de Modelo Teórico Explicativo
Apesar do reconhecimento do stress secundário e do trauma na Traumatologia, a literatura confronta-se com a ausência de um modelo teórico explicativo e empiricamente suportado para o STSD (Secondary Traumatic Stress Disorder) em familiares ou indivíduos íntimos de vítimas de trauma, incluindo o stress de guerra secundário.
Apesar da parca conceptualização específica, a pesquisa visa contribuir para a compreensão deste fenómeno, recorrendo a modelos de stress e crise familiar antes de analisar criticamente os modelos de transmissão do trauma.
📌 Psicóloga Clínica: Susana Oliveira
Este texto é uma adaptação do artigo denominado “O conceito de Traumatização Secundária” retirado do Capítulo II – Impacto da PTSD do Ex-Combatente na Família: STSD: Traumas da Guerra, pp 38 a 43, incluído na tese de Mestrado em Psicologia intitulada “Traumatização Secundária das Famílias dos Ex-Combatentes da Guerra Colonial com PTSD” apresentada á Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa Pode ser lido na integra aqui:
