Daniel Justino, ex-combatente, sócio da APOIAR, tem um processo para qualificação como DFA por stress de guerra que se arrasta há 14 anos. Daniel é apenas uma das muitas caras de um processo interminável para muitos ex-combatentes doentes. Dos possíveis 56.000 doentes em Portugal nos últimos 11 anos apenas 1.281 processos foram iniciados. Terminados, apenas 134 processos, média de 1 por mês. Destes, como ”DFA”, temos um número muito reduzido. Assim sendo, não percebemos como é que o Estado Português criou este Labirinto para fugir às suas responsabilidades no apoio a uma doença adquirida ao serviço de Portugal.
Há quantos anos iniciou o seu processo DFA e quando acha que irá ser resolvido?
Com fundamento na legislação então vigente sobre o assunto em epígrafe e com data de 17 de Maio de 1998 e a conselho do médico psiquiatra que me vinha acompanhando, Dr. José Tropa, dirigi a Sua Exª o Senhor Chefe do Estado-Maior do Exército um Requerimento onde expunha os acontecimentos mais marcantes que vivi na guerra em Angola e no qual requeri a elaboração de um processo sumário por doença com vista a, após ser submetido a uma Junta Médica de Inspecção, ser-me atribuído um grau de desvalorização em função da diminuição da minha capacidade geral de ganho.
Neste momento, decorridos cerca de 14 anos, sei apenas que o processo, por informação na Direção de Saúde de Lisboa, se encontra no Hospital do Porto para determinação de nexo de causalidade, onde em tempos fui submetido a duas consultas – uma de Psiquiatria e outra de Psicologia.
Mas não deveria ser um processo simples?
Entre 1999 e 2002 saltei entre vários exames e consultas no Hospital Militar, convocado por igual número de ofícios de vários organismos diferentes do exército.
No dia 26 de Fevereiro de 2002, fui finalmente submetido à Junta Médica do Hospital Militar Principal cuja decisão, na posse de todos os exames e relatórios dos Técnicos envolvidos e do parecer do Director de Psiquiatria, que não era o Dr José Tropa, foi “Incapaz de todo o serviço militar e apto parcialmente para o trabalho com uma desvalorização de 35%”;
O processo teve uma decisão favorável em menos de 4 anos e nada fazia prever que o seu desfecho não ocorresse rápido.
O que se passou, então?
O Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério da Defesa Nacional, por Ofício de 23 de Julho de 2003, deu-me conhecimento que o processo tinha sido devolvido ao Estado-Maior do Exército a fim de serem efectuadas diligências complementares.
Através da APOIAR solicitei informação sobre quais os esclarecimentos e diligências em curso. Responderam-me.
Esta informação consubstancia as várias vicissitudes do processo referindo, nomeadamente, que numa primeira análise os Serviços de Saúde concluíram que a desvalorização de 35% não tem relação com o serviço militar.
Porém, numa análise posterior, em Outubro de 2006, conclui que “a doença pela qual a Junta do Hospital Militar julgou este Furriel Milº incapaz de todo o serviço militar com a desvalorização de 35%, deve ser considerada como doença em serviço”.
Também em informação homologada em 13 de Dezembro de 2006, o Departamento Jurídico do Ministério da Defesa Nacional propõe o seguinte despacho “o ex-militar deve ser qualificado Deficiente das Forças Armadas, uma vez que afeções que lhe foram diagnosticadas e de que padece foram adquiridas em circunstâncias directamente relacionadas com o serviço de campanha durante o serviço militar “
Porém, o parecer final desta informação, uma vez que detetou, decorridos cerca de 9 anos após a entrada do processo, que tinha sido o Dr. José Tropa o autor do relatório apresentado aquando da sua instrução e não obstante os Serviços de Saúde lhe terem solicitado esclarecimentos sobre o meu caso, refere que “o processo de Qualificação como DFA do ex-Furriel Mil. José Maria da Silva seja devolvido ao Ramo, sejam também declarados anulados os actos acima identificados, bem como outros em que o Coordenador da Clínica de Psiquiatria tenha participado no âmbito de uma causa de impedimento, bem como, seja reinstruído o processo.”
Como desconheço o nome da pessoa acima referida, questionei o Ministério da Defesa sobre tal facto e a resposta foi a de que se tratou de um erro formal ao que eu chamaria a chapa nº5 existente e que depois adaptam em função das necessidades.
Começa aqui a “guerra“ do já longo processo pelo facto de o Dr. José Tropa, que assinou o relatório então enviado às entidades competentes, em 1998, para instrução do processo, ser também médico no Hospital Militar apenas com a função de Psiquiatra e não fazendo parte da Junta Médica que apreciou todos os exames a que fui submetido.
Que tipo de ações tomou?
A meu pedido, a APOIAR remeteu uma carta ao Exmo. Senhor Chefe do Estado-Maior do Exército a lamentar a derrogação dos direitos humanos do cidadão e ex-combatente manifestada nas delongas do processo, cuja petição entrou em Maio de 1998, a referir que são pedidas novas diligências por factos alheios ao ex-combatente, que estava confirmado o nexo de causalidade entre a doença de que sofre o ex-combatente e que tinha sido já confirmada a sua doença no exercício da vida militar tendo sido considerado como Deficiente das Forças Armadas, que o requerente agiu sempre de boa fé, que nada ocultou e que não pode ser prejudicado, ao fim de 9 anos e de várias reapreciações e devoluções do processo, que o Dr. José Tropa tinha um contrato com a Caixa Geral de Depósitos de prestação de serviços e que o ex-combatente recorreu aos seus serviços de forma aleatória e que não houve qualquer favorecimento por parte do requerente ou do Psiquiatra.
A existir qualquer irregularidade por parte do Psiquiatra, foi sanada tanto pela Junta Médica como pela CPIP/DSS, cuja competência, isenção e capacidades não foram postas em causa.
E que fizeram depois dessas contradições?
Fui informado que tinha sido autorizado (não solicitei qualquer autorização) a ser presente a nova Junta Médica de Inspecção no Hospital Militar Regional, no Porto, devendo aguardar o envio da guia de marcha. Esclareço que resido no Concelho de Almada. Compareci a uma consulta de psiquiatria no referido Hospital do Porto.
O mesmo Hospital solicitou a minha comparência, para ser presente a uma Junta Médica. Não recebi qualquer abono e todas as despesas ocorridas com a deslocação foram por mim suportadas.
A Junta Médica, com base apenas na consulta de psiquiatria a que tinha sido sujeito, limitou-se a dizer-me, sem quaisquer hipóteses de resposta, que me tinha sido atribuída a desvalorização de 10% e que se não concordasse fizesse uma reclamação por escrito.
Fui de seguida acompanhado por um Sargento para outra sala onde me forneceu um documento com a informação necessária à elaboração do recurso. Na guia de marcha que sempre me acompanhou nas deslocações ao Porto, consta o seguinte:” Incapaz de todo o serviço militar, apto, parcialmente para o trabalho com 10% de desvalorização”.
Por não concordar com a decisão da referida Junta Médica que colocou em causa todo o trabalho e a competência Técnica dos colegas do Hospital de Lisboa, requeri, com base na legislação em vigor, solicitando ser presente a uma Junta Especial de Recurso, apresentando um Relatório da Psicóloga e outro da Psiquiatra que me vêm apoiando, para além dos fundamentos da minha discordância.
E foi a essa junta especial de recurso?
Na sequência do recurso apresentado e de acordo com a convocatória que me foi enviada, compareci na Junta Médica de Recurso, no Palácio Vilalva, em Lisboa, no dia 13 de Maio de 2009.
Para meu espanto, fui apenas informado que tinha de ir novamente ao Porto para fazer exames psicológicos.
Profundamente indignado com esta situação, não compareci à consulta marcada mas depois e em face do aviso-notificação recebido, decidi comparecer no dia 9 de Dezembro de 2009, pelas 9h30, tendo sido recebido por um psicólogo que se limitou a fornecer-me um conjunto de impressos com perguntas para responder.
Cumpri o determinado e apresentei-me à referida Junta Médica tendo-me sido dito, apenas, que, finalmente, possuíam os elementos que lhes permitiam tomar uma decisão devendo aguardar a comunicação por escrito. Foi-me ainda perguntado se tinha algo a dizer.
Os elementos que lhe permitiam tomar a decisão respeitam aos que foram enviados pelo Hospital do Porto uma vez que os de Lisboa, pelas razões invocadas, tinham sido anulados.
Não sabendo qual o conteúdo da decisão, embora entenda que já estivesse tomada, nada poderia dizer sobre o que me foi perguntado.
Aguardei a comunicação da decisão tomada a qual me foi transmitida por ofício de 28 de Julho de 2010 e que diz o seguinte: “A Junta Militar de Recurso decidiu manter a decisão médico-militar anterior –“ incapaz de todo o serviço militar, apto parcialmente para o trabalho com 10% de desvalorização”. Era uma decisão previsível face a todas as vicissitudes do processo.
Como se sente tratado, enquanto ex-combatente, pelo Estado Português, MDN e Políticos em geral.
A todos os que tiverem o privilégio de ler o Jornal da nossa Associação, sejam ou não ex-combatentes, pretendo dar-lhes a conhecer as vicissitudes de um longo processo, sem fim à vista, e que espelha bem o que o nosso Estado não faz na defesa dos direitos daqueles que lutaram pela Pátria.
É uma vergonha o que se passa relativamente ao tratamento dos processos dos ex-combatentes, o que leva a concluir que não há vontade política em os resolver.
Qual é na sua opinião o maior entrave a que estes processos possam ser mais céleres na sua resolução?
Há demasiados organismos envolvidos na resolução dos processos em causa e muitas das pessoas ligadas a estas análises não possuem a sensibilidade adequada para as tratar. Do meu ponto de vista, este assunto deverá ser resolvido, em primeiro lugar , pelos técnicos de saúde mental – Psiquiatras e Psicólogos – cujos relatórios deverão ser rigorosamente respeitados e, em segundo lugar, pelos técnicos de direito cuja função deverá ser, única e exclusivamente, apreciar se os documentos entregues estão em conformidade com a lei. A história militar que é descrita pelo ex-combatente também poderá ser confrontada com a da companhia da qual fez parte se existir. É que o arrolamento de testemunhas para confirmarem o que o ex-combatente relata, para além de arrastar o processo, já não é muito viável face aos anos que já decorreram.
O problema será resolvido de forma natural com a morte dos interessados uma vez que muitos dos ex-combatentes já têm 70 anos. É isso que interessa ao poder para não ter de suportar encargos mas isto é uma ofensa à dignidade dos mesmos e constitui uma vergonha para um Estado democrático que não zela pelos interesses daqueles que foram obrigados a lutar pela Pátria e não respeita as decisões tomadas pelas equipas técnicas que tem ao seu serviço.
Faça um comentário acerca desta forma de avaliação, Hospital Militar e Juntas Médicas.
Só posso entender esta situação aberrante pelo facto de não pretenderem resolver os processos em tempo oportuno e com a devida transparência – há vários processos em idênticas situações que se arrastam há vários anos.
Às psicólogas envolvidas neste processo bem como aos restantes intervenientes e em especial às pessoas que constituíam a Junta Médica, foi-lhes passado um atestado de incompetência camuflado uma vez que não têm conhecimento deste facto porque o processo foi anulado e transitou para a área do Porto. Teria sido por não confiarem nos Técnicos de Lisboa? Sendo a minha área de residência a de Lisboa qual a razão de me mandarem ao Porto? Teria sido pelo facto do Dr. José Tropa ainda estar a prestar serviço no Hospital Militar de Lisboa? Não têm confiança nele e é mantido ao serviço? Será que o Dr. José Tropa é um corrupto? Que eu saiba não.
Dada toda esta situação o que pensa fazer se não lhe for reposta a avaliação inicial que lhe dava os 35% de incapacidade?
Como não fui eu que disse sofrer de stress de guerra mas sim os médicos que me avaliaram e a junta médica confirmou os 35% de desvalorização, só me resta recorrer aos tribunais.
Conhece a proposta da APOIAR apresentada ao Secretario de Estado. Qual a sua opinião .Já devia haver resposta?
Sim, a proposta foi entregue por esta Direção numa reunião com o Secretário de Estado em Novembro do ano passado e aguardamos ainda uma resposta ou comentários às situações apresentadas, o que ainda não aconteceu. Infelizmente é assim! Quero manter a esperança que o problema da simplificação processual venha a ocorrer.
NA APOIAR o que acha que faz falta para melhorar a ajuda aos ex-combatentes com stress de guerra?
A APOIAR nada mais pode fazer para ajudar os ex-combatentes uma vez que, de acordo com o protocolo celebrado com o MDN, já elabora o modelo 2, elucida os interessados da tramitação processual a que vão estar sujeitos e dá-lhes o apoio social, psicológico, psiquiátrico e médico de que precisam.
Qual acha que deveria ser o papel das associações de ex-combatentes neste processo, nomeadamente da Federação Portuguesa das Associações de combatentes, e como avalia o que tem sido feito?
Nem todas as Associações estão preparadas para apoiar os ex-combatentes nesta matéria. A APOIAR é a única que tem esta função exclusiva.
Julgo que as várias Associações existentes a nível dos ex-combatentes deverão imprimir uma dinâmica de comunicabilidade mais efectiva por forma a que se caminhe para uma verdadeira defesa dos interesses dos ex-combatentes aos vários níveis.
Uma vez que existe a FEPAC – Federação Portuguesa das Associações de Combatentes -, deverá ser esta estrutura a congregar todos as iniciativas por forma a que as mesmas sejam levadas ao conhecimento dos responsáveis para que sejam apreciadas e decididas caso se justifique. Infelizmente esta estrutura não tem dado provas de cumprir com a sua função como seria desejável.
Daniel Justino dos Santos