Por: Humberto Silva
Ninguém acreditava que conseguíssemos fazer alguma coisa
Mário Gaspar foi para a tropa como todos os outros rapazes da sua geração:
“Não me interessava ir para o serviço militar e ir para a guerra pois era uma pessoa muito politizada mas acabei por ir fazer o curso dos sargentos milicianos. Como tive que cumprir o serviço militar, assumi todas as minhas responsabilidades. Não era a minha vida que estava em causa mas sim as dos outros que estavam comigo.”
Esteve no Curso de Operações Especiais, Rangers, em Lamego, tendo posteriormente recusado a participar nele, depois do “julgamento” que me fizeram, antes de fazer o curso de Minas e Armadilhas em Tancos, “um curso ministrado somente para oficiais e sargentos. Dei instrução para grupos de 77 pessoas de cada vez. Eram carne para canhão, era um número exagerado”, lembrou.
Foi depois que os enviaram para a Guiné. “Quando esperava para desembarcar fui enviado por uma lancha LDM para Gadamael Porto. Na viagem para Gadamael fizemos um sorteio onde foi escolhido o meu pelotão tão para o destacamento de Ganturé.
Ao segundo dia, como era da especialidade de Minas e Armadilhas, puseram-me logo a rebentar os ‘Baga-Bagas’. Fazia-o com trotil.
Os estrangulamentos eram feitos com os dentes, arriscando-me a ficar cego.”
Depois começaram as patrulhas.: “Na primeira patrulha junto à Guiné ex-francesa quase que morria à sede. Foi quando senti realmente o que era a guerra. Foi também nesse dia que deixei de beber água na Guiné. Só bebia cerveja. Não me embebedava mas andava sempre anestesiado” .
Caí em emboscadas e estive na montagem de emboscadas, fiz patrulhas, fui atacado no quartel e tive que montar engenhos explosivos.”
A companhia perdeu um furriel e dois soldados. O furriel era um grande amigo e hoje tem uma rua com o seu nome, na sua terra.
Quando chegou ao fim da comissão pediram-lhe que desmontasse tudo o que tinha montado e outros engenhos explosivos montados pelos outros especialistas de minas e armadilhas, visto ter falecido um furriel, outro ter sido atingido pelos estilhaços de uma armadilha que montava e o alferes ter sido dispensado de manusear estes engenhos explosivos.
Foi no regresso a casa que começou a ter problemas. Complicações nos intestinos levaram-no a procurar ajuda e a fazer vários exames que revelaram problemas psíquicos depois de consultar um psiquiatra.
“Foi quando comecei a ter problemas na empresa. Mandaram-me para um psicólogo. E eu lá, falava, falava mas o psicólogo não dizia nada.”
Foi quando lhe respondeu: “Doutor, assim deixo de vir, o Doutor não diz nada… Assim também eu queria ter um emprego”.
Com o agravar dos problemas a sua mulher, que andava no Hospital Júlio de Matos, falou com a psiquiatra que o aconselhou que fosse avaliado. Foi da boca da psicóloga Dalila Aguiar que finalmente saiu o diagnóstico:
“Você tem Stress de Guerra. Você está bastante doente”
“Eu não sabia o que isso era. Quero deixar aqui o meu agradecimento à falecida Dr.ª Dalila Aguiar” confessou Mário Gaspar.
São a Dr.ª Fani Lopes e o Dr. Afonso de Albuquerque que encaminham o ex-combatente Mário Gaspar para a Terapia de Grupo os Serviços de Psicoterapia Comportamental do Hospital Júlio de Matos. É logo lá, nesse mesmo primeiro dia, que juntamente com outros membros do Grupo, o convidam para criar a Associação APOIAR. Aceitou o lugar de Vogal e quando o primeiro Presidente da Direção António Almeida se demite, é Jorge Santos que assume o lugar de Presidente da Direção, passando Mário Gaspar a assumir o lugar de Secretário.
“É preciso lembrar que Jorge Santos estava muito doente quando assumiu a responsabilidade de ficar à frente da associação.”
Foi quando a APOIAR passou a estar mais participativa nos debates sobre a Guerra Colonial e a sociedade a começar a ficar mais desperta para o problema.
“Pouco tempo depois li num jornal que havia um debate sobre a guerra na Biblioteca Museu República e Resistência. Foi nesse debate que lancei uma frase que me ocorreu na altura: ‘A guerra continua dentro de nós’. Essa frase teve impacto e fui convidado pelo Adelino Gomes, João Paulo Guerra, Fernando DaCosta e outros jornalista para dar entrevistas. Foi quando começou a ouvir-se falar da APOIAR e do Stress de Guerra. No primeiro Congresso Internacional de Stress Pós-traumático realizado na Gulbenkian fomos atirados para as bocas do mundo pelo Dr. Luís Gamito.”
A APOIAR começou também a dar voz a reivindicações como o reconhecimento oficial da doença e a criação da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Stress de Guerra, assim como outras causas dos ex-combatentes, como é o caso da contagem de tempo de serviço militar para efeitos de reforma, a inserção da guerra colonial nos manuais escolares ou considerar o ex-combatente uma profissão de risco.
A APOIAR teve um grande poder reivindicativo junto do poder político e ficou mais conhecida através da comunicação social e fez com que a própria guerra começasse a ser mais falada.
Fundamental para a consolidação da Associação foi a cedência do novo espaço no Bairro da Liberdade em Lisboa:
“Tivemos um processo com o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa na altura, o João Soares, para a cedência das instalações, que depois nos foram entregues pelo Carmona Rodrigues. A casa foi-nos entregue em tosco mas conseguimos fazer as obras também com o apoio da Câmara”.
Mário Gaspar recorda que a luta pela RNA foi muito árdua. A APOIAR insistiu sempre nestas reivindicações e parte do sucesso dos objetivos conseguidos foi devido a manterem a comunicação social sempre informada.
“Aproveitávamos os conhecimentos com jornalistas que nos ajudavam nesse sentido. Fizemos reuniões com todos os partidos políticos mesmo aqueles sem assento parlamentar e as centrais sindicais para a aprovação [da Lei 46/99 (reconhecimento do stress de Guerra) e Lei 50/2000 (criação da RNA)].
As nossas duas grandes vitórias acontecem quando em reunião com o falecido deputado Marques Júnior ele nos pergunta ‘Afinal, o que pretendem?’
‘Que a lei seja aprovada!’ disse-lhe, porque o Partido Socialista era o único que não apoiava a lei. E ele respondeu ‘Podem contar comigo’.
Lembro-me que na altura da discussão e aprovação do Projeto Lei na Assembleia da República, a SIC perguntou-nos o que faríamos se a lei não fosse aprovada. Na altura a direção decidiu por proposta minha que iríamos pedir aos ex-combatentes e associados que não votassem nas eleições que iriam decorrer nos próximos meses”.
Na reunião com o Grupo Parlamentar de Saúde onde apareceram todos os deputados – o que era raro – faleu mais de uma hora com toda a gente muito interessada a ouvir. Mostraram-se muito preocupados, principalmente com a questão dos familiares, as mulheres e filhos, visto a APOIAR ter começado a detetar na altura que os próprios filhos dos ex-combatentes doentes também começavam a apresentar problemas.
“A Lei foi logo aprovada! E esta reunião contribui para que a lei fosse aprovada.” recordou.
Quanto à questão da contagem de tempo de serviço militar Mário Gaspar recorda o que foi falado:
“Quando o Paulo Portas me alegou que o Ministério da Defesa tinha feito algo, depressa o neguei e disse-lhe que tinha deturpado tudo o que era pretendido” .
Quando foi assinado o protocolo com o Ministério da Defesa Nacional, Mário Gaspar foi convidado a discursar mas recusou.
“Mesmo com muita gente a assistir não quis discursar e disse que não tínhamos nada que agradecer aquilo que não era mais do que justo e uma obrigação”.
Quando a lei foi aprovada a Associação começou a ser convidada para vários eventos, ciclos e conferências.
“Os nossos colóquios eram feitos desta forma: eu e outros dirigentes falávamos da minha experiência pessoal para puxar as pessoas que assistiam a partilharem também as suas.
Sempre lutámos para que os clínicos gerais das associações pudessem substituir o médico de família quando os utentes não tivessem acesso a um e pudessem preencher o Modelo 1, assim como fazer o Modelo 2.
Em três colóquios organizados pelo Ministério da Defesa Nacional, em Lisboa, Porto e Coimbra levantámos sempre essa questão mas nas conclusões desses colóquios essa reivindicação nunca ficou registada, tendo a APOIAR protestado”.
O ex-dirigente lembra que houve muito que ficou por fazer e projetos por concluir.
“Tínhamos entre mãos os distritos de Santarém e de Setúbal. Fizemos praticamente todos os concelhos do distrito de Santarém e reuniões com quase todos os autarcas desse distrito, excetuando Sardoal, Fátima e Vila Nova de Ourém. Os municípios concordaram com a ida da Associação a esses concelhos para poder prestar os seus serviços e dar consultas para suprir as necessidades que a população sentia. Houve três câmaras que acederam em abrir gabinetes para dar consultas de psicologia. Municípios que foram escolhidos de forma descentralizada. Isso nunca seguiu para a frente porque a direção que nos sucedeu nunca falou connosco para saber o que estava a ser feito dar seguimento a esse projeto.”
Mário Gaspar deixa um concelho para o futuro:
“Tem de haver uma luta constante com o poder político e com a comunicação social. São precisas reuniões com o poder político e mesmo com as centrais sindicais para reivindicar os apoios financeiros necessários para tratarmos dos nossos utentes.”
“É preciso que se diga que o apoio psicológico é muito importante. Cheguei a tomar dezenas de comprimidos por dia. Hoje só tomo três. Outra questão e a dos filhos. Muitas vezes não se trata só de mau ambiente em casa. Chamámos a atenção que os filhos também sentem problemas.”
Para terminar Mário Gaspar recorda as dificuldades com que se deparou no início da associação.
“Foi muito complicado. Vim para a APOIAR contra a opinião dos meus filhos e da minha mulher.
Criámos uma associação quando não estávamos minimamente preparados. Éramos doentes. O Dr. Afonso de Albuquerque até ficou admirado como é que acabámos por conseguir criar a APOIAR.”