Entrevista a Mário Vitorino Gaspar

Por: Humberto Silva

Mário Vitorino Gaspar está na Associação APOIAR desde o primeiro dia, que foi, e ainda é, fundamental para a sua recuperação como ex-combatente doente com Stress de Guerra. Depois de muitos anos à frente dos destinos da Associação, onde foi Vogal e secretário dois anos, Vice-presidente dois anos e Presidente da Direção, seis anos, hoje é apenas um utente.Numa entrevista ao jornal APOIAR de Abril de 2013 quis deixar o seu testemunho, legado e conselhos para o futuro.
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Ninguém acreditava que conseguíssemos fazer alguma coisa

NA GUINÉ 


Mário Gaspar foi para a tropa como todos os outros rapazes da sua geração:

“Não me interessava ir para o serviço militar e ir para a guerra pois era uma pessoa muito politizada mas acabei por ir fazer o curso dos sargentos milicianos. Como tive que cumprir o serviço militar, assumi todas as minhas responsabilidades. Não era a minha vida que estava em causa mas sim as dos outros que estavam comigo.”

Esteve no Curso de Operações Especiais, Rangers, em Lamego, tendo posteriormente recusado a participar nele, depois do “julgamento” que me fizeram, antes de fazer o curso de Minas e Armadilhas em Tancos, “um curso ministrado somente para oficiais e sargentos. Dei instrução para grupos de 77 pessoas de cada vez. Eram carne para canhão, era um número exagerado”, lembrou.

Foi depois que os enviaram para a Guiné. “Quando esperava para desembarcar fui enviado por uma lancha LDM para Gadamael Porto. Na viagem para Gadamael fizemos um sorteio onde foi escolhido o meu pelotão tão para o destacamento de Ganturé.

Ao segundo dia, como era da especialidade de Minas e Armadilhas, puseram-me logo a rebentar os ‘Baga-Bagas’. Fazia-o com trotil.

Os estrangulamentos eram feitos com os dentes, arriscando-me a ficar cego.”

Depois começaram as patrulhas.: “Na primeira patrulha junto à Guiné ex-francesa quase que morria à sede. Foi quando senti realmente o que era a guerra. Foi também nesse dia que deixei de beber água na Guiné. Só bebia cerveja. Não me embebedava mas andava sempre anestesiado” .

Caí em emboscadas e estive na montagem de emboscadas, fiz patrulhas, fui atacado no quartel e tive que montar engenhos explosivos.”

A companhia perdeu um furriel e dois soldados. O furriel era um grande amigo e hoje tem uma rua com o seu nome, na sua terra.

Quando chegou ao fim da comissão pediram-lhe que desmontasse tudo o que tinha montado e outros engenhos explosivos montados pelos outros especialistas de minas e armadilhas, visto ter falecido um furriel, outro ter sido atingido pelos estilhaços de uma armadilha que montava e o alferes ter sido dispensado de manusear estes engenhos explosivos.

O REGRESSO A CASA E A DOENÇA 

Foi no regresso a casa que começou a ter problemas. Complicações nos intestinos levaram-no a procurar ajuda e a fazer vários exames que revelaram problemas psíquicos depois de consultar um psiquiatra.

“Foi quando comecei a ter problemas na empresa. Mandaram-me para um psicólogo. E eu lá, falava, falava mas o psicólogo não dizia nada.”

Foi quando lhe respondeu: “Doutor, assim deixo de vir, o Doutor não diz nada… Assim também eu queria ter um emprego”.

Com o agravar dos problemas a sua mulher, que andava no Hospital Júlio de Matos, falou com a psiquiatra que o aconselhou que fosse avaliado. Foi da boca da psicóloga Dalila Aguiar que finalmente saiu o diagnóstico:

“Você tem Stress de Guerra. Você está bastante doente”

“Eu não sabia o que isso era. Quero deixar aqui o meu agradecimento à falecida Dr.ª Dalila Aguiar” confessou Mário Gaspar.

 
NASCE A APOIAR 

São a Dr.ª Fani Lopes e o Dr. Afonso de Albuquerque que encaminham o ex-combatente Mário Gaspar para a Terapia de Grupo os Serviços de Psicoterapia Comportamental do Hospital Júlio de Matos. É logo lá, nesse mesmo primeiro dia, que juntamente com outros membros do Grupo, o convidam para criar a Associação APOIAR. Aceitou o lugar de Vogal e quando o primeiro Presidente da Direção António Almeida se demite, é Jorge Santos que assume o lugar de Presidente da Direção, passando Mário Gaspar a assumir o lugar de Secretário.

“É preciso lembrar que Jorge Santos estava muito doente quando assumiu a responsabilidade de ficar à frente da associação.”

A GUERRA CONTINUA DENTRO DE NÓS 

Foi quando a APOIAR passou a estar mais participativa nos debates sobre a Guerra Colonial e a sociedade a começar a ficar mais desperta para o problema.

“Pouco tempo depois li num jornal que havia um debate sobre a guerra na Biblioteca Museu República e Resistência. Foi nesse debate que lancei uma frase que me ocorreu na altura: ‘A guerra continua dentro de nós’. Essa frase teve impacto e fui convidado pelo Adelino Gomes, João Paulo Guerra, Fernando DaCosta e outros jornalista para dar entrevistas. Foi quando começou a ouvir-se falar da APOIAR e do Stress de Guerra. No primeiro Congresso Internacional de Stress Pós-traumático realizado na Gulbenkian fomos atirados para as bocas do mundo pelo Dr. Luís Gamito.”

A APOIAR começou também a dar voz a reivindicações como o reconhecimento oficial da doença e a criação da Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Stress de Guerra, assim como outras causas dos ex-combatentes, como é o caso da contagem de tempo de serviço militar para efeitos de reforma, a inserção da guerra colonial nos manuais escolares ou considerar o ex-combatente uma profissão de risco.

A APOIAR teve um grande poder reivindicativo junto do poder político e ficou mais conhecida através da comunicação social e fez com que a própria guerra começasse a ser mais falada.

Fundamental para a consolidação da Associação foi a cedência do novo espaço no Bairro da Liberdade em Lisboa:

“Tivemos um processo com o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa na altura, o João Soares, para a cedência das instalações, que depois nos foram entregues pelo Carmona Rodrigues. A casa foi-nos entregue em tosco mas conseguimos fazer as obras também com o apoio da Câmara”.

A CRIAÇÃO DA RNA 

Mário Gaspar recorda que a luta pela RNA foi muito árdua. A APOIAR insistiu sempre nestas reivindicações e parte do sucesso dos objetivos conseguidos foi devido a manterem a comunicação social sempre informada.

Assinatura do Protocolo da Rede Nacional de APOIO em fevereiro de 2002

“Aproveitávamos os conhecimentos com jornalistas que nos ajudavam nesse sentido. Fizemos reuniões com todos os partidos políticos mesmo aqueles sem assento parlamentar e as centrais sindicais para a aprovação [da Lei 46/99 (reconhecimento do stress de Guerra) e Lei 50/2000 (criação da RNA)].

As nossas duas grandes vitórias acontecem quando em reunião com o falecido deputado Marques Júnior ele nos pergunta ‘Afinal, o que pretendem?’

‘Que a lei seja aprovada!’ disse-lhe, porque o Partido Socialista era o único que não apoiava a lei. E ele respondeu ‘Podem contar comigo’.

Lembro-me que na altura da discussão e aprovação do Projeto Lei na Assembleia da República, a SIC perguntou-nos o que faríamos se a lei não fosse aprovada. Na altura a direção decidiu por proposta minha que iríamos pedir aos ex-combatentes e associados que não votassem nas eleições que iriam decorrer nos próximos meses”.

Na reunião com o Grupo Parlamentar de Saúde onde apareceram todos os deputados – o que era raro – faleu mais de uma hora com toda a gente muito interessada a ouvir. Mostraram-se muito preocupados, principalmente com a questão dos familiares, as mulheres e filhos, visto a APOIAR ter começado a detetar na altura que os próprios filhos dos ex-combatentes doentes também começavam a apresentar problemas.

“A Lei foi logo aprovada! E esta reunião contribui para que a lei fosse aprovada.” recordou.

Quanto à questão da contagem de tempo de serviço militar Mário Gaspar recorda o que foi falado:

“Quando o Paulo Portas me alegou que o Ministério da Defesa tinha feito algo, depressa o neguei e disse-lhe que tinha deturpado tudo o que era pretendido” .

Quando foi assinado o protocolo com o Ministério da Defesa Nacional, Mário Gaspar foi convidado a discursar mas recusou.

“Mesmo com muita gente a assistir não quis discursar e disse que não tínhamos nada que agradecer aquilo que não era mais do que justo e uma obrigação”.

Quando a lei foi aprovada a Associação começou a ser convidada para vários eventos, ciclos e conferências.

“Os nossos colóquios eram feitos desta forma: eu e outros dirigentes falávamos da minha experiência pessoal para puxar as pessoas que assistiam a partilharem também as suas.

Sempre lutámos para que os clínicos gerais das associações pudessem substituir o médico de família quando os utentes não tivessem acesso a um e pudessem preencher o Modelo 1, assim como fazer o Modelo 2.

Em três colóquios organizados pelo Ministério da Defesa Nacional, em Lisboa, Porto e Coimbra levantámos sempre essa questão mas nas conclusões desses colóquios essa reivindicação nunca ficou registada, tendo a APOIAR protestado”.

O FUTURO 

O ex-dirigente lembra que houve muito que ficou por fazer e projetos por concluir.

“Tínhamos entre mãos os distritos de Santarém e de Setúbal. Fizemos praticamente todos os concelhos do distrito de Santarém e reuniões com quase todos os autarcas desse distrito, excetuando Sardoal, Fátima e Vila Nova de Ourém. Os municípios concordaram com a ida da Associação a esses concelhos para poder prestar os seus serviços e dar consultas para suprir as necessidades que a população sentia. Houve três câmaras que acederam em abrir gabinetes para dar consultas de psicologia. Municípios que foram escolhidos de forma descentralizada. Isso nunca seguiu para a frente porque a direção que nos sucedeu nunca falou connosco para saber o que estava a ser feito dar seguimento a esse projeto.”

Mário Gaspar deixa um concelho para o futuro:

“Tem de haver uma luta constante com o poder político e com a comunicação social. São precisas reuniões com o poder político e mesmo com as centrais sindicais para reivindicar os apoios financeiros necessários para tratarmos dos nossos utentes.”

A IMPORTÂNCIA DA APOIAR 

“É preciso que se diga que o apoio psicológico é muito importante. Cheguei a tomar dezenas de comprimidos por dia. Hoje só tomo três. Outra questão e a dos filhos. Muitas vezes não se trata só de mau ambiente em casa. Chamámos a atenção que os filhos também sentem problemas.”

Para terminar Mário Gaspar recorda as dificuldades com que se deparou no início da associação.

“Foi muito complicado. Vim para a APOIAR contra a opinião dos meus filhos e da minha mulher.

Criámos uma associação quando não estávamos minimamente preparados. Éramos doentes. O Dr. Afonso de Albuquerque até ficou admirado como é que acabámos por conseguir criar a APOIAR.”

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